Deus está à espreita nos intervalos. Per speculum in aenigmate, diz S. Paulo, vemos todas as coisas ao contrário, então nós estamos no céu e Deus sofre na terra. o terror do Inferno é a sua irrealidade; todas as criaturas, incluindo o Diabo, regressarão a Deus. a democracia é o desespero de não achar heróis que nos dirijam. ninguém se apaga no nirvana porque a extinção de inúmeros seres no
nirvana é como a desaparição de uma fantasmagoria que um bruxo numa
encruzilhada cria por artes mágicas, e noutro lugar está escrito que
tudo é mera vacuidade, mero nome, e até o livro que o declara e o homem
que o lê. eu não fui essas pessoas; isso, quando muito, foi o disfarce que vesti e que deitei fora.
o planeta foi criado há poucos minutos, e povoado de uma humanidade que
«recorda» um passado ilusório. quem me ouvir assegurar que este gato que
está ali a brincar é o mesmo
que brincava e fazia travessuras nesse lugar há trezentos anos pensará
de mim o que quiser, mas a loucura mais estranha é imaginar que
fundamentalmente é outro. há na história da filosofia doutrinas
provavelmente falsas, que exercem um obscuro encanto na imaginação dos
homens: a doutrina platónica e pitagórica do trânsito da alma por muitos
corpos, a doutrina gnóstica de que o mundo é obra de um deus hostil e
rudimentar. que razões há para postular que já existe o futuro? - uma,
os sonhos premonitórios; outra, a relativa simplicidade que esta
hipótese confere aos inextricáveis esquemas que são típicos do seu
estilo. também pretende eliminar os problemas de uma criação contínua...
o porvir é inevitável, preciso, mas pode não acontecer.
a música, os estados de felicidade, a mitologia, as faces trabalhadas pelo tempo querem dizer-nos alguma coisa, ou alguma coisa disseram que nós não deveríamos perder, ou estão para dizer alguma coisa; esta iminência de uma revelação, que não se produz, talvez seja o facto estético. porventura haverá um arquétipo ainda não revelado aos homens, um objecto eterno, que deverá estar fazendo paulatinamente a sua entrada no mundo. quem diz que a arte não deve propagar doutrinas, costuma referir-se a doutrinas contrárias às suas. todos os poemas do passado, do presente e do porvir são episódios ou
fragmentos de um único poema infinito, erigido por todos os poetas do
globo. talvez a história universal seja a história da diferente entoação de algumas metáforas. a história universal é um infinito livro sagrado que todos os homens
escrevem e lêem e tentam compreender, e livro este em que também são
escritos.
se o mundo é o sonho de Alguém, se houver Alguém que agora está a
sonhar-nos e que sonha a história do universo, como é doutrina na escola
idealista, a aniquilação das religiões e das artes, o incêndio geral
das bibliotecas, não importa muito mais que a destruição dos móveis de
um sonho. a história é um interminável e perplexo sonho das gerações humanas; no sonho há formas que se repetem, talvez não haja mais nada senão formas; uma delas é o processo que esta página vem denunciar.
se a literatura não fosse mais que uma álgebra verbal, qualquer um poderia produzir todo e qualquer livro, à força de tentar variantes. as emoções que a literatura suscita são talvez eternas, mas os meios têm
constantemente de variar, nem que seja de um modo levíssimo, para não
perderem a sua virtude. declarada insuficiente a linguagem, há lugar para outras; a alegoria pode ser uma delas, tal como a arquitectura ou a música. toda a linguagem é de índole sucessiva; não é hábil para raciocinar o eterno, o intemporal.
~através de excertos reposicionados de
Outras Inquisições de Jorge Luís Borges
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