Da Cadência (ou Acerca de um Dólmen)

O exercício mais difícil para um bailarino deverá ser o de saltar para uma determinada posição, de modo a que nem um segundo decorra até atingir essa posição, antes nela se fixe durante o próprio salto. Não haverá bailarino que porventura o consiga executar - mas aquele cavaleiro executa-o. A maior parte dos homens vive perdida em preocupações e alegrias mundanas; são os que ficam sem par e não entram na dança. Os cavaleiros da infinitude são bailarinos e têm elevação. Executam o movimento ascendente e descem de novo, e nada disto resulta também numa perda de tempo funesta ou desagra­dável à vista. Mas de cada vez que descem não conseguem atingir imediatamente a posição, vacilam um instante, e essa vacilação mos­tra todavia que são estranhos neste mundo. Essa vacilação é mais ou menos evidente de acordo com a sua arte, mas nem mesmo o mais dotado desses cavaleiros consegue escondê‐la. Nem chega a ser necessário vê‐los no ar, basta apenas vê‐los no instante em que tocam e voltam a tocar a terra — e reconhecemo‐los. Mas conseguir descer de modo a que pareça que no mesmo instante se estava parado e em andamento, de modo a transformar o salto da vida numa passada, de modo a exprimir absolutamente o sublime no pedestre — só aquele cavaleiro o sabe fazer — e este é o único e ímpar prodígio. 
- Soren Kierkegaard, Temor e Tremor
Os caminhos de veludo vermelho são pontuados por focos de luz que projectam mapas nos reflexos nebulosos de fumo do ópio. Estes mapas que constantemente mudam de forma consoante a sua justificação ao fumo são a única representação autêntica do labirinto que este hotel é.

A história começa com a obsessão com o que brilha, e com a obsessão de destruir aquilo que brilha. Às estrelas havemos de um dia ter atirado pedras. Mas elas, e esta em específico, têm noção de si mesmas. Numa determinada noite, a estrela decidiu-se: se os caminhos lá em baixo são determinados cá em cima, por curiosidade algum dia os tinha de ver.

Começa a Decadência. Como todo o sistema precisa da sua dose negativa para se vangloriar enquanto tal (e é no negativo do eu que se espelha o que um eu é), a estrela começou a cair. Distância da queda de um sonho. A estrela passou a moldar-se pelos ventos gravíticos, parecia polir-se e erodir para aquilo que resultaria num fim putativo.

A estrela, na suspensão - o sublime trágico.
A estrela, na constelação - o inferno em destroços.
A estrela, no paraíso perdido - o eterno retorno.

Eis que na liberdade máxima dos jogos da sorte (desprovidos de esperança ou desespero pré-determinados), desliza para mim, qual memento mori (que variedade, neste nosso purgatório), um dólmen. E eu vanglorio-me de ter arquitectado todo este condomínio para o oferecer a alguém, mas quanto mais o percorro, mais me encontro. O que faz aqui um dólmen?

De Cadência. Eu construí todo este espectáculo para agradar uma Perséfone infernal, mas não invernal. Juntei Thanatos a Dionísio, e do Hades removi os Campos Elíseos para conceber a cadência: a observação distante da perpétua queda de uma estrela, cujo chão se lhe afigura tão perto quanto distante... na constante esperança do fim.

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