Valdrada

Inadvertidamente terá Ítalo Calvino visitado o submundo sem disso se aperceber, quando n'As Cidades Invisíveis descreve Valdrada. Física e mecanicamente, Valdrada coage com os valores e as decisões tomadas para com as almas que ficam cá, presas ao mundano, com afazeres inacabados:
Às vezes o espelho aumenta o valor das coisas, às vezes anula. Nem tudo o que parece valer acima do espelho resiste a si próprio reflectido no espelho. As duas cidades gémeas não são iguais, porque nada do que acontece em Valdrada é simétrico: para cada face ou gesto, há uma face ou gesto correspondente invertido ponto por ponto no espelho. As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se nos olhos continuamente, mas sem se amar.
Se já só o facto da ida nos retém trémulos para duvidar da própria essência e moral da vida... que seria se as cidades da morte se amassem? E note-se o puxão para a cultura viking com o prefixo Val- semblante do seu espécimen de pós-vida, Valhalla. Os credos passaram o tempo também a inverter as máximas da vida na morte, prometem aos de justiça pessoal (heutonomia) o decrépito, e aos pobres de espírito a ascese.

E és recebido num bar e pedem-te para jogar um jogo. Dão as cartas e a mão, estranhamente causadora de um dejá vu complexo, não te vai valer de muito. Aquele mísero valete não dá conta de trunfos que sabes iminentes. Que chegaram para te conquistar um território interior. Que chegaram já conquistados por uma substância outra. Devolve as cartas, não ouses tirar mais que lenços das mangas para limpar o choro.

Há uma só receita para o sucesso na vida, pensando a lógica dos reflexos. Se perto é longe e bom é mau, chamarei a esta violenta táctica de ataque massivo. E consta no seguinte: perceber que o tempo, o espaço e as emoções estão profundamente interligados (x, y e z, onde z é a profundidade, o interior psíquico). Nesta interligação há que notar que a coordenada espacial onde determinados valores foram postos em prática está agora muito para trás, devido aos movimentos de rotação e transladação. E uns dias depois podemos até passar próximo desses valores, mas serão inalcançáveis, perdidos no tempo, eternos no vácuo universal. A profundidade é convertida em vacuidade (vanitas).

Deram-te um mau jogo e as cartas não ajudaram. Sim, podes ficar e aprender a jogar, mas a única coisa que existe de transcendental para além da ontologia do reflexo é a sorte. E o acaso do ocaso. As massas cadentes demandam, depois recebem e ainda se revoltam em cólera. Os reis e deuses que deram o que podiam dar tiveram também de se baixar para atar os próprios sapatos desconfiados. E todos eles desistiram da falta de humildade, do vazio mental, da rouquidão projectada das suas palavras naqueles ouvidos. Não lhes podiam confiar um encontro de primeiro grau entre a cara, a coroa e o chão. Não é assim que fazemos.

Aforismo: tropeçar só para viajar (to trip). E a vida tem de ser assim quando o desejo pelo estado de paixão (pathos, estado patológico) é superior a todas as outras inclinações do espírito. E pedimos pirâmides pretas sem um luto, só pelo símbolo. E ondas azuis que nunca foram as mesmas, mas nunca morreram. Cegueira amarela, uma menos visual e mais feliz. Mas lidar com o descomedimento é o peso da cruz de quem se livra da humanidade. "Aquele que faz de si mesmo uma besta livra-se da dor de ser humano" (Dr. Johnson).

Então porque viémos parar a este purgatório? Valer-nos por mais, para nos julgarem por menos? Tivemos de sofrer a sorte de um mau jogo, claramente viciado. Há que explicar que não é o outcome do jogo que importa, mas o seu simetral oposto. Não deixa, contanto, de ser interessantíssima a paisagem purgatorial de Calvino, tão clara, tão anterior.

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