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 Diz-me quantos fomos, Os que mal amámos, Os que por erro quiseram, Os que se humilharam? Diz-me a razão para amar A ideia que deixei flutuar, A limitação do seu soar Mal transcrita pelo sonar? A minha pessoa só queria A segunda seduzia A terceira mal sabia Quatro escadas para derrapar Cinco dias, sem dormir, Pela sexta vez que me matar.

O prosaico na campa de Paganini

Na campa de Paganini Vi duas estátuas conversar Disso tenho a certeza!  Estavam à vista e não nas visões, Eram de mármore e não de gelo, Acenavam, apontam e confirmam O lugar de quem Por pactos Electrificou os violinos Com o sombrio. Falaram dos jardins por onde se param Leões — e dos quantos que sujaram De sangue a via de lírios, com dentes Cuspidos — fragmentos ao acaso E em cada um, os restos das pessoas, Os restos das caras gastas, De quem sabia em que sítio fica o quê. Sugeriram a palavra “Anestesia!” Antes que a verrina soasse Vinda numa arcada do sepulcro. Tirem-me as dróseras e os ramos de rosas, daqui. Recordam o sol do meio-dia Na cemitéria, em que tu esqueces Com o GPS, o tabaco e o tablet A vaga fútil de calor e desejo, Ai sentida onda da aurora tenra... E eu contei-lhes o quanto ansiei Pela grandeza de ver o mapa e ler o céu, Para fugir na crista que não se quebra Do nosso país, que nunca existiu.

Atreve-te // Andréas-Salomé

 Atreve-te, atreve-te, atreve-te a tudo! Não precisas de mais nada! Não tens de te ajustar ao padrão, Nem desejar ser tu mesmo um padrão. Acredita que a vida te vai dar alguns dons. Se queres uma vida, aprende... a roubá-la! Atreve-te, atreve-te a tudo! Seja na vida, No que és, e no que quer que aconteça. Não defendas um único princípio, Mas algo muito mais maravilhoso: Algo que está dentro de cada um E que arde como o fogo da vida!

O Todo

Foi só preciso ouvir o cartomante, Para assinares o pacto inadvertido: Deste ouvidos por um lavagante, E o Ideal da Beleza foi corrompido. Entra a carta do Diabo pela janela, Numa noite, a meio da vigília, Ondulando sobre a secretária, E abre a boca para dizer "Vou-te contar, vais ficar a saber: Como é que, entre tudo o que é Belo, Podes adivinhar o dom do seu encanto. Como é que entre o carnal e o divinal Se formula a magia do prazer. Queres saber qual é a obra mais doce?" E agora podes responder, aborrecido: "Se na Natureza tudo é rígido, Nada existe com menos densidade. Se na Natureza tudo desabrocha E consola com o abraço da Noite; Se na Natureza a harmonia é lei Que preside à Beleza do conjunto, Haveria alguma impotente análise Para detectar os intrépidos acórdãos? Se na Natureza tudo me rapta, Metamorfose mística dos sentidos n'Um, Então ignoro a partícula que me seduz. Ela expira música. Ela canta perfumes!"

A Parte

Quanto tempo falta? Para que a peça de gramática Configure um jardim de granito, frígida arte? Para desabrochar no alvo, da derradeira aurática, Quanto falta, cadáver, para encontrar aquela parte? De um puzzle subtil, para fazer da alma o Atlas E demolir as peças de armaduras de papel,  Afim de contemplar rio, ao espelho, montanhas altas A gelar na ideologia infernal que soluça fel? Nunca me coube o papel de conhecer os teus Ídolos, As badaladas das beladonas, prismas, estátuas de lodo, De peitos martelados e frontes derretidas — Amor, O Teu — não mais que penumbra perversa, sombra Do ceifar da própria Morte, a rodopiar como um morcego, Faz brotar em espirais espinhos nas roseiras do cérebro!

Atmosfera

Raias de gelo. Livro de horas, flor do mal, bloco de gelo e, no esvanecer da rima, o degelo. Despejadas as lágrimas, ansiosamente vertidas — reluzem sobre a cara e revelam a crise do verso, mas não a dos heróis, dos vilões ou dos pobres de espírito. Deixa-me dissolver só e sem rima. É por isso que me faço degelo: geada, dissoluto, lágrima no oceano, pedra na margem, zero absoluto. Derreter. Desfazer. Desvanecer. Derramar: derramar porque tem de se derramar, inundar e levar tudo e todos com a armadilha de uma parede marítima. E deixa-me ser o que tu não queres. O nada feito tsunami . A inundação esmagadora, que sufoca e consome, subtrai em pedradas e ossadas as mãos dos aplausos silenciados das estátuas — desse lado do livro. Cristalizar. Concretizar. Congelar. Na liberdade do verbo e do anverso, na vertigem de cada gotícula a correr a aresta do bloco. O poder potencial de poder e de deixar poder, sem temer perder os lugares que se desfazem. Este não é um jogo de cadeiras: é o jogo de s

Estalactite

Serpenteia nas estalactites da cúpula da caverna um dragão longo: ao som ecoado dos articulados harpejos dedilhados pelas suas garras numa harpa escarlate, ao clangor tonitruante das suas escamas esmeralda. Canta da morte, do súbito, do sublime, da glória e da difamação, encerradas na bolha de sabão que é este tecto. Submerge para cuspir sementes, embarcações, quiçá entoar um nada harmónico, dedicado aos intervalos das coisas. Dos topázios que tem por olhos fulgem raios que derretem em lágrimas o que ninguém dava por emoções. Também tu, querido leitor, serás raptado e envolvido pelo dragão: de cadência, às constelações de safiras, subterrâneas e virtuais. Fez tronar hediondas tumbas, para abrir o chão tumultuoso e das raízes negras destes caracteres fazer brotar estátuas de gelo — de que ainda reluzem faíscas turquesa. Inspira e empina o nariz, adianta-se desprovido das estalactites que, ao acordar, limpou dos olhos — lacrimosas estóicas. Para trás deixou as estalagmites de que fazia j

Antígona de Gelo

À luz fria reflectida numa catarata que não gelou, vi um enxame de olhos focarem-se no que se deixou por penas traçado, puro vitimismo passado.  Os lençóis sujos, as sombras largadas, as jóias que deixaram um trilho de luz,  os amigos que só foram sonhados.  Esta acrópole gelada, sobre um cemitério, sobre tantos, montados por cima dos outros. Jazigos plantados em mausoléus: gelados.  Na vez de cadáveres: estátuas de gelo e nada aqui derrete, tudo fica, tudo recorda, tudo ainda geme ao frio. Espirais da luz turquesa, nas dores do corpo,  tremores na face transtornada, as lágrimas—estalactites, no preciso momento em que surgem.  Nada vai, tudo fica.  E se plantei cemitérios, se moldei quimeras nas geadas (quando quis formar rosas líquidas), foi porque nada ficou e eu tive de fazer ficar.  Se estes jardins estão assim gelados, não são para enxames de agora, mas para quem encontrar a minha alma, lançada num iceberg, afim de bicadas de picaretas —  narigadas do passado — para a voltar a cro

Gravidade e Elegância // Weil

(Tradução de "Gravity and Grace" de Simone Weil) Todos os movimentos naturais  da alma são controlados por leis semelhantes à da gravidade. A Elegância é a única excepção. Estamos sempre à espera que as coisas aconteçam em conformidade com as leis da gravidade, excepto quando existe intervenção sobrenatural. Há duas forças que governam o universo: a luz e a gravidade. Gravidade . O que costumamos esperar dos outros depende do efeito da gravidade sobre nós mesmos, o que deles recebemos depende do efeito que a gravidade exerce sobre eles. Por vezes (por sorte) estas expectativas coincidem com os resultados. Muitas vezes não. O que é que leva a que, quando um humano mostra precisar de outro (não importa a leveza ou a grandeza desta necessidade), este acabe por se evadir? Gravidade. O Rei Lear  é uma tragédia de gravidade. Tudo aquilo a que chamamos vil é um fenómeno da gravidade. Para além disso, a palavra vileza é indicativa deste facto. O objecto de uma acção e a quantidade de

L'Accidia Capricciosa

Descobri que o verdadeiro amor não é salvar a face, é incondicional. Quando é que me vais deixar em paz? Acredito que podes encontrar independência e, se não, vive como se estivesses perdoado. Lamento não ter podido salvar o teu mundo. Estava ocupado a construir o meu. Eu escolhi-me a mim. — Mirror, Kendrick Lamar se não é para viver aqui, mas do outro lado, quem são os abutres e as psicoses para nos guiar? limpa o pó às auréolas da cisão entre o antigo e o amor. ergue-te, mariposa proxeneta. até aonde é que os caprichos do destino não nos levam? dos pedestais tudo parece mínimo e baixo, mas é a arrogância que é baixa, — plinto sem nome ou título, sangue no lodo de pantanosos lençóis. até aonde é que os caprichos do azar  não nos levam? qual é o correlato entre o teu  smoking e toda a mão desta batota? porque é que a magia verde não teve em olho o bom partido e se coibiu com  full house ? até aonde é que os caprichos da preguiça não nos levam? e se sabes tanto das manilhas das artes, c

Estalagmite

Aqui se cantou o gelo eléctrico, que flutua sujo, sob os descobertos tectos de mármore da caverna. A estátua de gelo que, como todo o mal — desde o tolo ao vilão — foi condicionada e seguiu moldada pelo Acaso, esse pai bastardo, falsário, nutrimento da paranóia e da nostalgia! Aqui se cantou o gelo decaído e errante — que flutua, iridescente como bolhas de sabão. O gelo solipsista das masmorras inóspitas, nos glaciares a que se submetem mitos à tortura de água — lágrima a lágrima. Aqui se contemplaram os vitrais das pirâmides — estalagmíticas, formadas nas retinas! Aqui se cantou o gelo dirigido à opulência do fim. Aqui se pretendeu por coda dar à luz o céu. E escama a escama, a reluzente transparência do nosso herói foi destilada. Agora chamam-lhe Nostos, já não canta e já não toca, serpenteia em direcção ao mar, sem sair do lugar.  Do tétrico ao mítico! Aqui se cantou o gelo eléctrico, acompanhado pela harpa das vísceras que não são das mulheres, nem dos homens: mas das almas. Descon

Bárbaro // Rimbaud

Passados os dias e as estações, os seres e os continentes, A bandeira encarnada sob a seda marítima e as flores árticas (das que não existem.) Livre das velhas fanfarras do heroísmo—que ainda assolam o coração e a mente—longe dos velhos assassinos. Ó! A bandeira encarnada sob a seda marítima e as flores árticas (das que não existem.) — Ternura! Das lareiras chovem rajadas de gelo, — Ternura! — fogos à chuva no vento de diamantes, cuspidos pelo núcleo que eternamente carbonizamos. — Ó mundo! (Longe dos velhos retiros e das velhas chamas, ainda ouvidas, ainda sentidas,) Fogo ardente e espuma. A música contorna os abismos e as colisões entre os astros no gelo. Ó ternura, ó mundo, ó música! E lá, todas as formas, os suores, as cabeleiras e os olhos a flutuar. E as lágrimas brancas, efervescentes, — ó ternura! — e a voz feminina chega à profundeza dos vulcões e das grutas árticas. A bandeira...

Proveito Caveiroso

Tecidos nutritivos agarrados a ossos, Vermes cegos que se afastam da luz, Quantos preferem afogar-se nos poços A aceitar a decomposição que os seduz. Incidências que nos remordem (enquanto lhes roemos o intradorso) Dissidências para uma desordem (para os outros fica o remorso) Esqueletos a nadar no fundo do quintal Ou no bem limado crucifixo do Anticristo Qualquer outro feito: puramente acidental. E é este um trabalho mal visto Fagulhas de sangue, chuva horizontal— De todos, o menos imprevisto.

Apetite pelo Nada // Baudelaire

Esfriado espírito, espantado amoroso pela luta, O esporão da Esperança que acendia esse ardor, Já não te quer montar! Vai, então, deitar-te, Velho cavalo de pés que acertam em cada obstáculo. Resigna-te, meu coração; dorme o teu sono, selvagem. Espírito exausto e vencido! Para ti, velho saltimbanco, O amor já não tem gosto, não tanto como a disputa; Então adeus, cantos metálicos, suspiros de flauta! Não tenteis de prazeres mais um coração aborrecido! Adorável Primavera que perdeu o seu odor!  E o tempo engole-me minuto a minuto, Como a imensa neve pesa sobre um corpo; Contemplo de alto as redondezas do globo E não procuro mais o abrigo de uma cabana. Podes, avalanche, levar-me com a tua queda?