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A mostrar mensagens de setembro, 2021

Inicial

 Se eu tivesse de dar nome às cores: prismas do abismo, diamantes de sangue, enterrado melodrama, surpresa divina; Pandemónio das ideias que ficam por acontecer! Encerra os lábios, não dispares antes de falar. Por todos os desejos que ficaram por soletrar, todos os planos que não concretizámos, todas as quedas dadas que ficaram por sonhar, tudo que no tempo expira, sem mais brando orgasmo. Larga os mortos, não os queiras levantar hoje. Anjos e demónios da frustração dos poetas, — fartos de inspirar, na antecâmara do canvas —  ardores de tudo o que não cheguei a fazer, devolvam-nos à vida, entreguem-nos de volta à luz! Acorda. Estende a mão. Não desistas.

O que a água me trouxe

  o tecido da tua carne puro como um vestido de casamento o tempo que nos levou até aonde a água chegou, e o tempo que voa entre nós os dois, ó, meu amor, não o deixes levar o que a água me trouxe pousa-me no reflexo deixa o único som ser o transbordar (bolsos cheios de pedras) pousa-me no espelho  e deixa o único som ser o transbordar e, ó, puro Atlas o mundo é a puta de um fardo tens-me preso por muito tempo e esta saudade e os barcos a apodrecer foi isto que água nos trouxe porque te levaram os que amavas mas devolveram tudo em troca de ti mesmo, como é que seria isto tudo de outro modo? seria isto tudo... de outro modo? porque é uma cruel amante e a aposta tem de ser feita, mas ó, meu amor, não me esqueças, quando eu deixar que a água me leve por isso, pousa-me no espelho deixa o único som ser o transbordar bolsos cheios de pedras pousa-me, no reflexo, e deixa soar o transbordar.

glória e consolo de mãos dadas

Sentei-me a analisar o sentimento (com o peso e gravidade do costume) e, por analogia, reparei: substituí um primeiro desgosto amoroso, por outro primeiro desgosto. Do primeiro restou silêncio radiofónico, do segundo silêncio radiofónico restou. Terá sido a substituição por um perfeito análogo (o mesmo, noutralgo) a motivar a mudança? Ambos se mantêm vivos no silêncio — símbolo dessas vidas—e quando morrem? (que já me morreram outros desgostos) como é que se salda a dívida da distinção e a da isolação de amplitudes supersónicas? como é que separamos as bandas da comunicação, como se se travassem os invasores? e por que raios será isso superior à companha? Para quê montar aos vivos as paredes que a morte (essa verdadeira némesis) por si já ergue? como é que nos hipnotizamos à crença de que alguém, por puro ódio, já não existe—quando ali está, em prantos, a espernear, rogando por diálogo? Receamos que a converseta sombria e límpida nos transfigure o coração no espelho de si mesmo. Que no

Elevação

— seguido de uma parte de "Élévation" de Charles Baudelaire uns avançam, outros atrasam, a prisão a um corpo ou a um passado, tudo isso que me dá asco, mas de que não me posso livrar a não ser por solidão. erros, deslizes, tolices, camisas que usei na primeira comunhão, todos despidos. e com a roupa o dissipar da névoa das águas do duche. é o gelo nos veios, sim—todo um veio de lírios, a contaminar quanto toca. o louvor pela frieza. o douto pelo prostituído. tu não distingues os fios dos discursões que te assolam e eu não posso ventilar mais do que já fiz, nu. eu matei uma mosca ao remate do poema, esmaguei a canção obsidiante num repente. oxalá pudesse aguardar, mas o que quero é o ápice dos momentos, o epítome da broa, o zénite dos sentimentos, a mais elevada das elevações. para lá do vasto sofrimento e do tédio  que pesam nas nossas vidas e obscurecem a visão, feliz é quem pode voar por campos,   luminosos e serenos, com vigorosas asas   aquele cujos pensamentos, como coto

Surpreso pela alegria

— tradução de "Surprised by Joy", de William Wordsworth Surpreso pela alegria—impaciente com o Vento Virei-me para partilhar transporte—Oh! e com quem Senão Tu, já há tempos enterrado no silente Sepulcro, Esse lugar que nenhuma vicissitude sonda? Paixão, fiel paixão, regressas à minha mente— Como me poderia esquecer?—Que encantamento, Que pela menor divisão de uma hora, Me arrebatou de engano ao ponto da cegueira E até à mais sofrida perda!—O regresso desse pensamento Foi a pior angústia que o sofrimento já carregou, Excepto uma e apenas uma: quando senti o desamparo, Ao saber que o melhor tesouro do meu coração cessara; Que nem o presente, nem os anos que estão por vir Podem à minha vista restaurar a tua face celestial.