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A mostrar mensagens de junho, 2015

1. Sabotagem

Num piscar de olhos. Reparem como o homem tende a descrever riquezas. A desmultiplicar em parcelas adjectivais os compostos disto e daquilo. Atira o coração às coisas e fotografa as manchas de tinta. Chama-lhe arte. Mas este processo pode estar vectorialmente gangrenado. Os quatro prados estão percorridos de tons de verde. A estrada é feita de tijolos dourados. O que acontece, deveras, é que as coisas são violentamente arremessadas ao coração. Que no impacto esguicha sangue por todos os lados. Manchas inomináveis, irreconciliáveis às formas do mundo e das coisas. Apesar de decorarem a realidade a bordados de ouro, a natureza permanece em mudança. Se descrever é atirar o coração ao mundo, que segundo processo é este?, para além da vida? O que é, em escrita, em literatura, deixar o mundo contorcer o coração? A descrição pede objectividade, mas o coração é arremessado à coisa. Num movimento oposto, teremos subjectividade. O autor levanta-se e segue pela estrada de tijolos dour

0,5. Crux Post-Mortem

Sabes que tornaste a acordar num sonho, que a realidade permanece fracturada mas retém a sua aparência cristalina. Nada aqui é demasiado, mas falta-lhe o factor do inesperado na vida. Depois de viver a ficção, a realidade parece aborrecida. As minhas condolências. Ó, perdi um discurso... ou devo ser eu a fazê-lo? No fundo, eu sou o único responsável por esta reviravolta. O Recusante surge com A Ilusão Esmeralda do Oeste  debaixo do braço. Ainda estou para perceber o que é que eu te fiz. Nasceste! E eu vim acordar-te para este mundo... real, como lhe chamas. Vim dar-te as boas novas em primeira mão. Que consegui e venci. Estes quatro caminhos de tijolos dourados são tanta ficção como a de antes. De facto, era uma questão de tempo até um dos finais felizes se concretizar e destronar a realidade. A nova ordem corresponde à sexta dimensão. A minha. Não percebes? Eu vou ter tudo o que tu tiveste! A última frase fora solta na voz de uma criança. Ao dizê-la cravou a mão no peito do au

XI. Lírio Virtual

"Que um homem escreva um conto e verifique que este se desenrola contra as suas intenções; que as personagens não actuam como ele queria, que se dão acontecimentos não previstos por ele e que se aproxima uma catástrofe que ele tenta em vão evitar. Este conto poderia prefigurar o seu próprio destino e uma das personagens é ele." - Nathaniel Hawthorne Treze. Cada um viveu o seu final feliz. Sempre soubemos mas nunca pensámos vê-los arder. Voltaste? Para me certificar que mais ninguém se magoa. O autor cai no chão. Então? O meu coração estilhaçou com a escrita do livro. Voltar à realidade sempre foi um objectivo. Meios para um fim. A humanidade? Ao menos tive direito a ver os teus olhos uma última vez. Tinha sido o suficiente, isto tinha sido o suficiente. Podias ter tudo o que tiveste no livro. Podias ser feliz e amar a sério. Porque é que isso não foi suficiente? Eu não achei que fosse possível. Aos vilões são barrados os caminhos dos heróis. Eu sabia no que me metia, não

X.Meios para um Fim

Sala redonda com treze assentos dispostos em círculo. Cada trono tem um número e doze deles estão ocupados pelos protagonistas, deixando um lugar vazio. Cinco deles estavam mortos. O tempo está claramente parado. Tudo isto foi decidido. Começou o autor. Hoje vamos abandonar o livro e voltar a ser quem éramos. A partir daqui só o futuro nos cega. Os amigos que perderam e os sonhos que se fundiram falharam a entender a felicidade. Conhecemo-nos bem demais. Somos mais do que devíamos. Disse o número treze. Sim, algumas mortes foram traições. Quando escrevi o livro ressuscitei as almas que sacrificámos. É por isso que aqui estou? Perguntou Alice. Tu e o teu irmão, o Recusante, foram excessos. As vossas mortes estavam próximas do meu coração. Não vamos regressar? Nunca regressámos. Respondeu o Recusante. O destino é da sorte e não do tempo. Cada um serviu o seu fim. Vocês recordaram histórias desconhecidas. Compreendi que o desafio à balança tem interferências. Outra voz. Há quem não te

VIII. No More Flaming Lips in L. A.

Agora vamos dar as mãos para sempre. O destino deixou esta dimensão à parte. Parada. Um tempo vago, um espaço morto. O Recusante, a figura encapuçada, fora apanhado. Está numa gaiola cúbica com um X em cada face. O Disco Externo aproxima-se, vestido de branco: Rá. Queria que aqui estivesses, no momento em que te apago. Eu? E o que ele te fez? Ele teve tudo o que eu nunca pude ter! Ele abandonou-me ao esquecimento e removeu-te da história! Eu quero e vou substituí-lo. Tu não vais substituir nada. Nem ninguém. Nem vais existir. Espera... tu não és... Eu sou um fetiche narrativo maior do que imaginas! O teu plano vai ser o teu fim! Eu venci a morte! Temporariamente. Mas porquê? Diz-me! Eu nunca te fiz mal! Lá isso não é bem verdade. Os ecos queimam. Quem és, afinal? Ser como tu. Um meio-termo. Eu não sou apenas o Disco Externo, eu sei de tudo o que se passou. Venho do décimo-terceiro final feliz onde... bem, eu era outra pessoa. Mas nunca me livrei de mim. Então saltei para esta dim

XII. Desfile da Morte

Clareira à noite. Há um trapézio de circo montado no centro e sobre ele dança um corpo em equilíbrio precário. No chão, um outro corpo prepara uma espécie de ritualística. Esfrega um rosário na tatuagem de um crucifixo. Dos olhos escorre sangue. Nunca pensei ver tantas cordas quebrar. A dança torna-se lenta e preocupante. É um sacrifício ritmado pela batida do coração. No chão, a prece torna-se conturbada, o corpo estremece descontrolado, alucinado. Ouvem-se os sinos da aldeia... doze, treze. Entra uma silhueta encapuçada com um pendente em forma de X. Achavam mesmo que iam evitar que eu viesse meter o bedelho? Ao ouvir a voz, o corpo desequilibra-se no trapézio, consegue agarrar-se à corda por segundos. Mas assim que vê quem fala, larga-se, cai e morre. Enquanto caminha em direcção ao cadáver, a outra silhueta vai batendo nas árvores. Já reparaste como tudo aqui é vazio e chato? Como ecoa? Repara, nós já nos apercebemos que o livro é um erro. O outro arrasta-se pelo chão para al

VI. «A Ilusão Esmeralda do Oeste»

"Essa greta era só uma boca do abismo de trevas que está por baixo de nós, em toda a parte. A substância mais firme da felicidade dos homens é uma lâmina interposta sobre esse abismo e que mantém o nosso mundo ilusório. Não é preciso um terramoto para a quebrar; basta apoiar o pé." - Nathaniel Hawthorne Não estamos a sós. Cama de hospital. Sentes outra vez peso no coração. Sabes que é a doença. Tomas um comprimido mas não está a funcionar. Porque é que não está a funcionar? Porque isso não é magia a sério, é uma ilusão. Entra um homem encapuçado no quarto. Não te deixaram morrer como eu pedi, então decidi aparecer. De debaixo do casaco tira um livro chamado A Ilusão Esmeralda do Oeste . Bem-vindo ao meu final feliz. Como? Porque é que estás a fazer isto? Eu nunca te fiz mal! Lá isso não é bem verdade. O homem despe o casaco e revela um pendente em forma de X. Não pode ser, tu não estás na história! Eu certifiquei-me disso! Múltiplas agendas. Eu só fiz o que sempre diss

IX. Alice Deste Lado do Espelho

"Em matemática, um sistema de axiomas só pode provar a sua própria consistência incluindo pelo menos um postulado que não pode ser demonstrado no interior desse sistema." - George Steiner Nuvem nove. Não somos treze. Há alguém a mais... ou um eu a menos. As paredes deste castelo... eu não me lembro de alguma vez as ter visto. Se não fizeres uma linhagem vais deixar o trono dissipar-se. Sim, mãe, e quando eu morrer aleatoriamente afogado? Vais ser tu a ficar com a coroa? Não. Eu descobri como evitar que isso aconteça. O que é que queres dizer? Esta poção; para acabar com qualquer linhagem. Tu não vais fazer isso, é bluff . E a Rainha de Copas que mo diga? Achas que estou a fazer bluff, mãe? Deixaste bem claro que nunca ninguém me vai amar. Porque não torná-lo oficial? Afinal, o que melhor aprendi contigo... é que o amor é uma fraqueza. Corte. Treze são três. Rapariga estúpida! Achas mesmo que vais ficar mais forte ao magoares-te? Sim, se souber que te vai magoar mais