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A mostrar mensagens de 2020

Ode contra Yaldabaoth

aquilo que nos surpreende leva a uma revisão da teoria e à redefinição de uma rede de crenças filho de Sophia, exilada por querer mais, as negras nuvens que encobrem o trono que reinam sobre um testamento mais antigo recebem o nome do tolo mais profano, acreditou ter criado tudo quanto existe. e ele divulga-nos o pecado da luxúria, quando na mão apertou o membro de Adam Kadmon, e da lança fez jorrar o sangue que encobre a história, e da história fez jorrar a culpa que nos encobre a nós, fôssemos, então, castos em tomar os erros dos outros. e ele divulga-nos o pecado da gula, quando tomou por suas as criações que eram nossas, quando derrubou jardins e semeou a discórdia na torre, quando engoliu de um trago a vontade de Adão, a sua mãe temperou-nos com moderação, ao enviar uma serpente. e ele divulga-nos o pecado da avareza, quando se apegou à visão do verdadeiro criador de tal modo que se considerou dono da arte sublunar e esculpiu nas tábuas dos mandamentos  a denegação de todo o tipo

por falar nisso

por entre laços e nós... a silhueta recortada pelos vitrais de mais uma igreja numa cidade recortada por maravilhas e fardos de palha das cortinas do palheiro revela-se o vilão pelo rodopiar da cadeira numa mão a água benta do estábulo, na outra uma corda sem saber como é que se fazem destas gravatas "mais uma destas..." ele queria enforcar-se na missa, durante o drama e ninguém fez gala para o ajudar com a corda (podia ser que seguisse preso ao sino e o fizesse soar) do outro lado, ouvia-se um louco contar a história de como ficaram três mortos num monte à espera do ocaso (três tristes tigres com estrica) "se os encontrarem, exumem-nos directamente para o Técnico" talvez fosse a história que eles mesmos queriam engolir talvez quisessem difractar para terminar (mas o que reluz não é mais que o reflexo da lava de um candeeiro cheio de água e bolhas) a história de mais uma reputação sem justiça poética um não tinha medo de espíritos, o outro não tinha espírito para me

Fábricas do fundo de um Abismo

havia egípcios menos subnutridos e os hieróglifos sempre pareceram  mais misteriosos e menos nebulosos contigo, em Babilónia nunca se falou tão bem, a mão dada com a face da chapada e o amor seriam diamantes a cair do céu mas o futurismo traz progresso e o que vem a seguir a tão instável, e sempre surpreendente, pandemia das ideias que acontecem (melhor que a dos factos ainda idealizados) separo a água doce de mais sal que se mistura mas nem as lágrimas na chuva diluem tanto sódio estalactites de diamantes suscitadas por maquilhagem as gárgulas de anjos são canhões de tanques e levanta-se o fumo roxo da maldição repara, vida, aqui vou eu outra vez! maximizas a idealização, a sensação é nada voltaste à masmorra dos costumes para mais uma tradição e já nem amaldiçoas deus para pedir permissão é só mais um, é só mais, é só... qual o mérito da solidão...? e surge a mesma electricidade, dos cabelos puxados acima o orgasmo consumado sobre mais um fantasma esguichado os teus olhos imploram po

Marés altas e, até, as mais altas

agarrem-se que é desta que eu manipulo o barco que é desta que saímos daqui que a maré desanda e nos leva em arcada agarrem-se que eu não vou abrir os olhos se não foi dantes que me estilhacei não vai ser agora que o vídeo anda devagar e agarrem-se que eu luto pela paz e só choro por saber  que não importa o quê eu vou suceder.

Insónia ardente em Burnt Norton

O céu envergonha-se quando olha para baixo e se detém com um incêndio a percorrer a recortada paisagem mental. Amplifica-se o baixo emocional, repete-se outra reza de ódio e, quando olhas em volta, o paraíso já não está em lado nenhum, o teu deus não está aqui. Como é que se estancam as constantes intrusões da realidade na minha música? Desde quando irrompem, entrópicas, as impressões imprecisas, sem ouvir nem ver, para interromper o fluído curso? E então apagam-se as velas simbólicas e já nada irradia luz para lado nenhum. É fácil acreditar no tarot quando temos por fundamento uma ligação básica, anterior, ancestral, entre todas as coisas que coexistem. Essa ligação já não existe.  Com deus morto, a luz apagada e os olhos abertos em busca de um qualquer recorte na negra margem desta realidade, não consegui ver nada. Pensei que no dia seguinte o sol ia brilhar, que não tinha outra alternativa. E esperei por mais de vinte e quatro horas e outros seis meses, poderia simplesmente estar nu

a má ideia (outro)

só te posso dar a realidade que preteres à bestialidade de quatro paredes e vinte cigarros os monstros debaixo da cama e os esqueletos no armário eu tive uma má ideia (só queria passar algum tempo contigo) esquece lá isso, esquece-te lá dele, esquece-te de ti eu não te queria cilindrar à pressão eu não queria controlar o que quer que fosse (o frio nunca me chegou a incomodar) eu sou os átomos da água dissipada no nevoeiro a tocar na cara de um qualquer corredor que corre para onde pode aproveitar (podíamos passar algum tempo juntos) eu tive uma má ideia eu não quero continuar isto eu só queria atenuar a dor esquecer-me disto, esquecer-me dele, esquecer-me de mim (devias saber que sou um cronómetro)

a má ideia

sou o nevoeiro dissipado estou a perder o meu tempo surjo por andar preocupado à espera que me venhas salvar não quero continuar a fachada preciso de tentar controlá-la não consigo largar a obsessão preciso de encontrar alguém tive uma má ideia (podíamos tirar algum tempo juntos) — mas esquece lá—esqueceres-te dele —faz esquecer-me de mim! mesmo que não devêssemos, bora preciso de alguém, faz-me sentir mas não tropeces, que não é real quem me dera prometer ser a cura tive uma má ideia preciso de acalmar a dor esquecer isto—esquecer-me dele —esquecer-te de mim (devias saber que sou temporário)
um dia o sonho tinha de acabar. fechei os olhos para pedir o resgate à Musa, saltei para o bote salva-vidas e droguei o Caronte, pedi redenção e permissão: desvios do riso rumo ao cume. e não será de certo esta auréola de fumo a ser ceifada; e não será por certo o perfume da maresia, ondulado na desventura imponderada, a tolher os sinuosos cursos. vão queimar outras bruxas, que nada disto importa. cada músculo deste coração doente, e sopro de alma cadente, pede pelas suas felicidades.

Seno a Cima (Interlúnio, pt. 4)

Imagem
"if our soul has trembled with happiness and sounded like a harp string just once, all eternity was needed to produce this one event”  — Friedrich Nietzsche Não é nada fácil distinguir A linha que separa o céu do mar Não há estrela que não se repita E que não dance pelas ondas Amar é a razão que nos separa E as cicatrizes na amnésia à força Só saram salvas pela tua saliva Jorram sangue a jacto na areia Tatuam até ao topo o torpe tempo Em que cada segundo contigo é eterno Gritei o som para destrinçar o paralelismo E descobrir a via sem a aresta terceira Acima ver o seno de um triângulo sem lados

Associações

— tradução de "Correspondances", de Charles Baudelaire A Natureza é um templo cujos vívidos pilares Permitem por acaso as palavras confusas; E o homem passa por entre florestas obtusas Que o observam com olhares familiares. Como longos ecos que minguam a distância Numa tenebrosa e profunda unidade, Vasta como a noite e como a clarividência, As essências, os sons e os tons associam-se. Perfumes frescos como as carnes infantes, Doces como flautins, verdes como o pasto — Outros, perversos, afortunados, triunfantes, Têm a expressão das mensagens tétricas, Como o âmbar, a musa, a mirra e o incenso, Que cantam ao transportam da mente e das estéticas.

2016

"Unsere hysterisch Kranken leiden an Reminiszenzen" (Os histéricos sofrem de reminiscências) — Sigmund Freud Foi ver o incêndio por uma esmeralda, A cidade a arder e eu a produzir glitch art Não se chama melodia, Estava a tocar glitch harp. Dançavam hienas e diabretes Em volta da dourada fogueira Onde me queimavam o boneco A dança fria do insucesso conferido Era bem feita e mais do que merecido! Eu via os saltos dos gigantes calcar — via-os de baixo, a aproximarem-se para apagar um cigarro — Conseguiram fingir que um cigarro Atirado ao longo do céu da noite Era uma estrela cadente. Semanalmente partiam os cargueiros E o cronómetro à espera do fim para respirar Com memórias cobertas de pó para se preservarem Num novo formol (pudesse guardá-las em cloreto de prata) Mas nas veias só o lítio, o lítio, o lítio: — não vou estilhaçar, não vou estilhaçar, não vou estilhaçar; — não me vou prender aqui dentro, esquecer como se vive sem; — queria poder amar o

A repetição

No dia um senti o revolver condenar-me a saltar, não da prancha, mas para um buraco no chão, a seguir um coelho branco para lhe pedir a medicação. No dia um empurraram-me, prenderam e torturaram-me para ver se me comporto , ofereceram um comprimido azul e não hesitei em saltar de volta para o buraco (alguém me tira daqui vivo?). No dia um apresentaram-me à memória e não foi um prazer ver o inimigo número um olhar para me ver chorar repetir para me ver chorar eu não sei o que dizer eles não sabem o que fazer o silêncio na mente, a dormência da vontade, a repetição, em repetição, das reticências da acção são o engenho da melodia que chicoteia e cicatriza sem sarar a agonia das copas destes cogumelos que pagam as dívidas a um exército de cartas que entregam a justiça poética de um 1984  babilónico. Não importa, não importa o dano está feito. Ai importa, pois importa, vocês é que apertaram o gatilho. O quadro que vocês repetem é tortura para mim,

Céu da Noite

a polifonia entoava esganiçada um coro mais que esquecido mas de tão primordial ontologia quanto surpreendente tenho tido recentemente tenho tido estes pensamentos estranhos recentemente pensamentos estranhos será será que alguma destas paisagens real? alguma destas visões é real? nada faz sentido para mim nada disto faz sentido será que se consegue dar voz a uma composição tão densa conseguirei transformar os harpejos em sequências compreensíveis aos mortais será que se atinge o céu da noite por uma sequência de sons angelicais? percorrem-se estes sete Cs como percorri os sete mares noutra vida? será o dó apenas um som ou a totalidade da comiseração mortuária acorde que transporta ao ancestral tal tempo em que os deuses tocavam o solo com os pés tal o tempo em que o tempo era um titã amaldiçoado ainda solto do triste destino de comer tudo o que produz de engolir tudo o que é e reduzir ao oblívio as almas apaixonadas? Cronos, esses sons de ossos ro

estas torres

nestas campas já não dançam mais mas há tronos montados por cima deste pandemónio clamam-se heróis, a pompa à trombeta, mas como podem correr os nossos cavalos e como continuam a tentar competir como podem competir quando deixarem de correr como podem repetir quando o sangue escorrer talvez fossem mais heróis fazendo-os seguir, devolvendo os cavalos às respectivas veias e revolver, revolver, revolver nas ruas levanta-se o mais hediondo e o mais perverso e o mais pestilento e desprezível odor das sarjetas que entupimos com corpos (esta é a autêntica visão do Estige, já não é mito, olha adiante,... e como queria poder tapar-te os olhos...) um a um, e dois a dois, e famílias inteiras mas o que conta não é desentupir é apontar o dedo, dizer que foi este ou aquele pareço velho, pareço viver noutra zona da capital, com os meus velhos ditados: o destino só é deixado à chance. e um a um e dois a dois e famílias inteiras sem enumerar que só a morte nos reúne não há que