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50% do que vemos é imaginado. Assumir a poesia: Fazer a emoção engolir a impressão. Assimilar ao mundo cores entrevistas. E o mundo renova um inocente interesse. Assumir o que li num poema e usá-lo para filtrar o mundo: Que o futuro é um baralho que me ficou com metade das rimas.
(provisório: "Analogia: Frustrada")  eu acho que defino o mundo conforme ele olha para mim mas eu sou tão isto mesquinho e o mundo a maior enormidade tenho apenas um par de portas (na mesma direcção) para poder ver o que lá se passa e ele tem todas as tantas outras pares ou ímpares, horizontais, diagonais, todas díspares (da heterocromia, do estrabismo) e eu confiante de que vêm ver-me. ao abismo. mas portas são portas... ou quiçá nem o sejam como a condição geral de isto tudo: areias, águas e lamas passadas, e isso—genial ou loucamente— diz tanto do que vejo do mundo como do que ele vê em mim.

Athenæum

 uma vez apresentei-me como acedioso, não por naturalidade, queriam eles, mas por dissidência. dissidência: até de uma apreciação étnica por expressões como "tem razão" ou "é verdade". não tenho razão, nem pretendo dizer verdades, sou preguiçoso. e acho que o fulcrum é mesmo esse: o preferir não fazer ou não dar seguimento à expectativa. naqueles tempos, decidi-me a trocar as voltas a um gestor de grandes projectos e fiz o que disse: apresentei-me como acedioso, pedindo logo perdão. nas seguintes sessões à sua presença, fui tirando um e outro pecados teológicos, quais coelhos, da cartola da conversa, gerando um padrão. os presentes poderiam dizer: faltam dois. eu questiono se entretanto me terão perdoado a acedia. que raio poderia eu fazer com sete pecados, se isso só atestava a estruturação de que me pretendo descentrar. querer ser distinto por volição pode parecer um ímpeto bárbaro, mas: e os primeiros dissidentes? os que inventaram deus? o que é que fizeram, para
eu só queria um pouco de luz. algo para distinguir o que vai no meio da bruma. e a tua mão dada à minha era a lavra das constelações, a mão que molda o barro da abismal planície azul, o esvaziar de todos os infortúnios palpáveis destes dias. o triunfo do meu ódio a Mercúrio. e então decidi falar. e não deixei ninguém falar, no entanto... porque é que me dispo tão depressa? porque é que a braguilha já vai sempre aberta às situações? não há filtro que dissipe a densidade das intenções. e em cada flor que se toca, uma bola de demolição. tudo projectado: Hollywood a infectar os cérebros, eu queria beijinhos à chuva, viver uma cena de cinema, vomitar sangue, entranhas e os nervos dos anjos... e dormir feliz ao fim da noite, como se o tumulto pudesse ter uma rolha.

Inicial

 Se eu tivesse de dar nome às cores: prismas do abismo, diamantes de sangue, enterrado melodrama, surpresa divina; Pandemónio das ideias que ficam por acontecer! Encerra os lábios, não dispares antes de falar. Por todos os desejos que ficaram por soletrar, todos os planos que não concretizámos, todas as quedas dadas que ficaram por sonhar, tudo que no tempo expira, sem mais brando orgasmo. Larga os mortos, não os queiras levantar hoje. Anjos e demónios da frustração dos poetas, — fartos de inspirar, na antecâmara do canvas —  ardores de tudo o que não cheguei a fazer, devolvam-nos à vida, entreguem-nos de volta à luz! Acorda. Estende a mão. Não desistas.

O que a água me trouxe

  o tecido da tua carne puro como um vestido de casamento o tempo que nos levou até aonde a água chegou, e o tempo que voa entre nós os dois, ó, meu amor, não o deixes levar o que a água me trouxe pousa-me no reflexo deixa o único som ser o transbordar (bolsos cheios de pedras) pousa-me no espelho  e deixa o único som ser o transbordar e, ó, puro Atlas o mundo é a puta de um fardo tens-me preso por muito tempo e esta saudade e os barcos a apodrecer foi isto que água nos trouxe porque te levaram os que amavas mas devolveram tudo em troca de ti mesmo, como é que seria isto tudo de outro modo? seria isto tudo... de outro modo? porque é uma cruel amante e a aposta tem de ser feita, mas ó, meu amor, não me esqueças, quando eu deixar que a água me leve por isso, pousa-me no espelho deixa o único som ser o transbordar bolsos cheios de pedras pousa-me, no reflexo, e deixa soar o transbordar.

glória e consolo de mãos dadas

Sentei-me a analisar o sentimento (com o peso e gravidade do costume) e, por analogia, reparei: substituí um primeiro desgosto amoroso, por outro primeiro desgosto. Do primeiro restou silêncio radiofónico, do segundo silêncio radiofónico restou. Terá sido a substituição por um perfeito análogo (o mesmo, noutralgo) a motivar a mudança? Ambos se mantêm vivos no silêncio — símbolo dessas vidas—e quando morrem? (que já me morreram outros desgostos) como é que se salda a dívida da distinção e a da isolação de amplitudes supersónicas? como é que separamos as bandas da comunicação, como se se travassem os invasores? e por que raios será isso superior à companha? Para quê montar aos vivos as paredes que a morte (essa verdadeira némesis) por si já ergue? como é que nos hipnotizamos à crença de que alguém, por puro ódio, já não existe—quando ali está, em prantos, a espernear, rogando por diálogo? Receamos que a converseta sombria e límpida nos transfigure o coração no espelho de si mesmo. Que no

Elevação

— seguido de uma parte de "Élévation" de Charles Baudelaire uns avançam, outros atrasam, a prisão a um corpo ou a um passado, tudo isso que me dá asco, mas de que não me posso livrar a não ser por solidão. erros, deslizes, tolices, camisas que usei na primeira comunhão, todos despidos. e com a roupa o dissipar da névoa das águas do duche. é o gelo nos veios, sim—todo um veio de lírios, a contaminar quanto toca. o louvor pela frieza. o douto pelo prostituído. tu não distingues os fios dos discursões que te assolam e eu não posso ventilar mais do que já fiz, nu. eu matei uma mosca ao remate do poema, esmaguei a canção obsidiante num repente. oxalá pudesse aguardar, mas o que quero é o ápice dos momentos, o epítome da broa, o zénite dos sentimentos, a mais elevada das elevações. para lá do vasto sofrimento e do tédio  que pesam nas nossas vidas e obscurecem a visão, feliz é quem pode voar por campos,   luminosos e serenos, com vigorosas asas   aquele cujos pensamentos, como coto

Surpreso pela alegria

— tradução de "Surprised by Joy", de William Wordsworth Surpreso pela alegria—impaciente com o Vento Virei-me para partilhar transporte—Oh! e com quem Senão Tu, já há tempos enterrado no silente Sepulcro, Esse lugar que nenhuma vicissitude sonda? Paixão, fiel paixão, regressas à minha mente— Como me poderia esquecer?—Que encantamento, Que pela menor divisão de uma hora, Me arrebatou de engano ao ponto da cegueira E até à mais sofrida perda!—O regresso desse pensamento Foi a pior angústia que o sofrimento já carregou, Excepto uma e apenas uma: quando senti o desamparo, Ao saber que o melhor tesouro do meu coração cessara; Que nem o presente, nem os anos que estão por vir Podem à minha vista restaurar a tua face celestial.

Sir Repentalot

já devia saber melhor do que deixar cristais à lua à espera de que se encham sonhos ou melhor ainda do que estender crucifixos invertidos e humedecidos (das lágrimas) para conseguir o que quero nunca sei o suficiente para evitar o constante atraso — linha um para Sir Repentalot — estou, sim? — ó, deus, queria-te nos meus lábios, ficcionei a tua resolução, por favor aprende com a minha presunção e não grites aos ventos vários as expectativas e respectiva preclusão vejo voar anéis de poder imaginários e pergunto-lhes como é que me devo sentir a cada nova cor da euforia acresce-se nova sombra à actualização respondem-me sem uma palavra que não há vida nenhuma sem isto — acredita no que vês e não no que te dizem

frutos de um só trago

outra redondilha para mais um cabelo branco, mais um melodrama que resulta num copo de água, engolido, nunca digerido, tragado, nunca degustado, quero o braço, larguem-me das mãos, quero as duas doses, quero todas as doses, não quero um tratamento demorado, quero em mim todas as curas do mundo, quero curar o ódio do mundo e a ferida é o oceano em que mergulhámos de cabeça à trincheira, conforme caíam os sonhos, conforme caíam as oportunidades desperdiçadas e as idealizações se defraudavam de si mesmas; e é a fraude, a única fraude, a fraude é o que somos, nunca aquilo com que nos importamos, a fraude é o meio e os fins são frutos de um só trago. não erramos tanto—quando desejamos a vida dos outros?

trago angústias cruéis d'aula demente

Preciso de destapar aquelas nuvens estão a manchar a minha campa de roxo e a verdura, colagens, não dá para rir, não é vidro, nem olho, é campo fosco. É outro juízo ao mesmo réu, repetição de L'Héautontimorouménos: a faca e a ferida; a estrada partida; estilhaço e explosão; um x-menos-um para a final salvação. Encolhe-se o eremita, esguia-se a enguia, acusado de x-mais-um pecados, a somar e a seguir a isto (não sei se haverá tempo para marisco) hipoteca-se mais tempo no purgatório, é anuir. Mas a acusação barafusta porque o público  já não confia em justiça alada. Já a que é popular é o pântano e a sujidade, a lama e o pudor, a auréola enmerdiolada de diabretes a escamotear. Nem o caos nos escuda. Querubins e serafins  fazem bruços nesta merda—e deus-nosso-senhor saiu quando lhe chegou a mostarda aos botins (é da lavagem a seco que mais tem pavor)! Quando recolhidas as emoções na tranquilidade da sala dos jurados as lamas sublimam depois do chuvisco parece que alguns não ficaram su

Aridez e espelhismos

Vi-te beijar espelhos poeirentos, Dos que se formam nos cantos Dos bocais de água, fina farinha, Uma traça em busca de uma flama: O fósforo torna-se cúpula E a alma despede-se das asas. Vi-te beijar reflexos nojentos, De tácteis impressões e Desbotadas sombras digitais: Vestígios de vectores, Dactilográfica separação onde O corpo se refracta. Vi-te beijar espelhos poluídos, Quando sintonizei que não estavas, Que a estática que havia de antes Da criança a regredir a camelo: Antes do pó se acumular Numa crina branca enevoada. Vi-te beijar reflexos poeirentos E tive inveja de não ser eu  A beijá-los: a seguir  Ao vidro que nos separa O que mais sobra é próximo De um reflexo feito flor.

(ensaio de) hino pela fé

 peço-te, ó filho parido à fé! peço-te, sonho da carne que é! imploro, ao berço de ti, Órfão! imploro, se do berço não cais... socorre os adeterminados! ajuda os solitários actuais! por favor, ó Órfão do deus sonhado! suplico-te, sonho-te até chegares, suplico, à hora de te ter rezado.

Procelosa

O meu espírito vai lapidar Na névoa que raia como corte A silhueta que há-de inumar Ao doce toque da luz por sorte. I Presságios do último desfiladeiro Das almas que não guardam os ais, Que passais, tempestuoso, derradeiro, Para salgar a terra, que não cresçam mais! Ou de outro mundo que se ilumina Com o curso de cometas e ideais, Onde a geometria já não obstina, Na ciência de todos os vendavais. Intempestivos requiems ao contínuo, Costumes e virtudes anulados, Desvarios da alma de libertino. Arrastando do restante ao resto As cores com que se traça o desígnio Da aridez, um submerso deserto. II Aberto ao reencontro pelo sonho, Na alucinação da alma vigilante, O regressivo espaço, o mogno, E uma memória—a mais obsidiante. Pés tortos pelas mais variadas drogas, Frasquinhos fracos, que abandonaste, Coloridos vasos, os que entornaste, Na praia onde amores e gatos afogas. E quando cessas, tornado sanguinário? De rodar, com os mastros, perdulário, Até ao dia em que recomeças: Tanta, tanta mo