Procelosa

O meu espírito vai lapidar
Na névoa que raia como corte
A silhueta que há-de inumar
Ao doce toque da luz por sorte.

I

Presságios do último desfiladeiro
Das almas que não guardam os ais,
Que passais, tempestuoso, derradeiro,
Para salgar a terra, que não cresçam mais!

Ou de outro mundo que se ilumina
Com o curso de cometas e ideais,
Onde a geometria já não obstina,
Na ciência de todos os vendavais.

Intempestivos requiems ao contínuo,
Costumes e virtudes anulados,
Desvarios da alma de libertino.

Arrastando do restante ao resto
As cores com que se traça o desígnio
Da aridez, um submerso deserto.

II

Aberto ao reencontro pelo sonho,
Na alucinação da alma vigilante,
O regressivo espaço, o mogno,
E uma memória—a mais obsidiante.

Pés tortos pelas mais variadas drogas,
Frasquinhos fracos, que abandonaste,
Coloridos vasos, os que entornaste,
Na praia onde amores e gatos afogas.

E quando cessas, tornado sanguinário?
De rodar, com os mastros, perdulário,
Até ao dia em que recomeças:

Tanta, tanta morte, mas para quê?
Se há de vir ainda mais outro vendaval,
E outro vento que ainda se prevê.

III

Segundos que saltas nos relógios 
Tics sem tacs, momentos sem preenchimento,
Represadas acções, eróticas vontades — 
O intervalo em que esperas o verbo.

Mortos que desejam regressar à nebulosa,
Tão forte o falhanço da honra de seu enterro
E saboreando cada bofetada da procelosa,
De sangue nos dentes sorriem, sabor a ferro.

Tudo o que nunca foi, poderá tornar a ser,
E o dia será o engodo das santas furiosas,
De asas alugadas, para no paraíso parecer,
Com a voz das almas, das mais escandalosas.

Abre os olhos e recusa a morte em vida.
Preocupa-te com os que estão do lado de cá.
Destati. Tendi la tua mano. Respira.

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