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A mostrar mensagens de abril, 2016

Fortuna (ou Acerca de três Monólitos)

De conversa com o taberneiro. Na morte quem nos fala é a sorte. Para definir o que acontece nesta morte vou utilizar o vocabulário da sorte, pois a ela se deixa tudo. A morte, a que conhecemos de olhos fechados, corresponde a um mundo de possibilidades, ao negrume que podia enclausurar uma forma branca, num desenho ou numa escrita, mas num mundo onde só existe negro, sem formas que se pretendam. O post-mortem  de uma alma, que é julgado pelo acaso, não deixa de ter uma coacção purgatorial: a das causas da morte. Neste nosso ocaso, cada alma tem um ponto de partida, um receptáculo pelo qual chega. E o problema é a chegada em si. Uma vez cá, começam vários jogos, alguns naturais como a demanda do porquê da morte, outros mais aleatórios, na demanda do quê de ser. Em primeiro lugar, cada alma que aqui chega, chega no momento em que o corpo reconhece que ficará em repouso naquele lugar por tempo indeterminado, seja esse lugar um caixão debaixo da terra, entre as pedras e as algas no mei

Roleta Russa (ou Acerca de um Epitáfio)

Que diabos faz aqui um dólmen? Ao dizê-lo, não fazia ideia da pertinência da questão. Rapidamente, das sombras emergiu o deus dos mortos, um jogador generoso, como Charles Baudelaire o descreveu, noutros tempos que já eram estes tempos. Foi nesse bar que bebi inspiração para fazer tudo isto por ti, ora repara bem no sítio para onde o levou, e neste sítio para onde te trouxe: Reinava uma delicada e perturbadora atmosfera que num instante fazia esquecer todos os horrores aborrecidos da vida; respirava-se uma sombria beatitude, similar à que os comedores de lótus deveriam sentir quando desembarcavam em ilhas encantadas, iluminadas por clarões de tardes eternas, que neles faziam nascer, aos sons adormecedores de melodiosas cascatas, o desejo de nunca mais rever os seus lares, as suas mulheres, os seus filhos e de nunca mais tornar a subir às altas ondas do mar. - Charles Baudelaire, "O Jogador Generoso" Chegou o taberneiro, dividiu copos e assim falou: aqui em baixo fazemos

Da Cadência (ou Acerca de um Dólmen)

O exercício mais difícil para um bailarino deverá ser o de saltar para uma determinada posição, de modo a que nem um segundo decorra até atingir essa posição, antes nela se fixe durante o próprio salto. Não haverá bailarino que porventura o consiga executar - mas aquele cavaleiro executa-o. A maior parte dos homens vive perdida em preocupações e alegrias mundanas; são os que ficam sem par e não entram na dança. Os cavaleiros da infinitude são bailarinos e têm elevação. Executam o movimento ascendente e descem de novo, e nada disto resulta também numa perda de tempo funesta ou desagra­dável à vista. Mas de cada vez que descem não conseguem atingir imediatamente a posição, vacilam um instante, e essa vacilação mos­tra todavia que são estranhos neste mundo. Essa vacilação é mais ou menos evidente de acordo com a sua arte, mas nem mesmo o mais dotado desses cavaleiros consegue escondê‐la. Nem chega a ser necessário vê‐los no ar, basta apenas vê‐los no instante em que tocam e voltam a toc

Ironia do Desastre

Requer-se um servente no corredor do snooker . Não há nada pior num casino. As máquinas funcionam. As cartas são atiradas ao ar bruscamente. Há uma briga perto das setas. Tudo bem. Mas isto? Apontava irritadamente para uma flor que surgia do veludo vermelho do tapete. É imperdoável. Em todo este Hades há falta do cheiro a desespero. No acaso não há esperanças. Ou só há esperanças. Seja como for, no acaso tudo é visceral, é primeiro e último, derradeiro. Neste nosso ocaso, o único julgamento possível é o do acaso. O único justo. Uma bola de snooker rola pelo chão, pega nela e arremessa-a à cabeça do jogador. Sabem o que é que não se permite neste nosso ocaso? Num bar de tanto renome como de cadência? Esperança simbólica. Não se permite nem uma lasca de esperança para além da do acaso. Nada frui, tudo decai. O servente chega e prontamente arranca a flor. Assim que o faz, desfaz-se em cinzas... porque assim quis... e chegou outro que limpou a nova sujeira. Os relógios não fazem um