Roleta Russa (ou Acerca de um Epitáfio)

Que diabos faz aqui um dólmen? Ao dizê-lo, não fazia ideia da pertinência da questão. Rapidamente, das sombras emergiu o deus dos mortos, um jogador generoso, como Charles Baudelaire o descreveu, noutros tempos que já eram estes tempos. Foi nesse bar que bebi inspiração para fazer tudo isto por ti, ora repara bem no sítio para onde o levou, e neste sítio para onde te trouxe:
Reinava uma delicada e perturbadora atmosfera que num instante fazia esquecer todos os horrores aborrecidos da vida; respirava-se uma sombria beatitude, similar à que os comedores de lótus deveriam sentir quando desembarcavam em ilhas encantadas, iluminadas por clarões de tardes eternas, que neles faziam nascer, aos sons adormecedores de melodiosas cascatas, o desejo de nunca mais rever os seus lares, as suas mulheres, os seus filhos e de nunca mais tornar a subir às altas ondas do mar.
- Charles Baudelaire, "O Jogador Generoso"
Chegou o taberneiro, dividiu copos e assim falou: aqui em baixo fazemos o seguinte, lançam-se estes três dados, devidamente numerados de 1 a 6, e o total é contado para ser consumido em shots de absinto. De seguida, carregamos três pistolas com cinco balas cada uma. Perigoso, não parece? E disparamos sobre as nossas testas. No caso de algum tiro falhar, os shots são absolvidos.

Viver ou morrer pelo rolar de um dado é excitante, não é? Um grande jogador, o deus dos mortos. De todo o modo, porque é que se pensa que na morte se julga mais que na vida? Lá tem-se tudo e aqui nada sobra, os nossos jogos de sorte acabam por ser um nada ou nada. Nesta paz perpétua, porque não aproveitamos? Agora sim, que não dantes. E o taberneiro derramou absinto para os nossos copos, e um whiskey com pedras de gelo ao lado. Rolámos os dados e disparámos pistolas. Rimo-nos muito dos buracos que fizemos nas nossas testas. Rimo-nos muito dos buracos que já tivemos no coração.

Já lhe disse que sou seu fã? Ninguém distribui desespero tão caridosamente como o deus dos mortos. Vi nos seus olhos que ponderadamente se preparava para responder. Mas pouco tempo depois, chegou uma mulher, vestida com roupa muito justa ao corpo, estampada de motivos do jogo das cartas. Viam-se tatuagens dos baralhos de ouros, paus e espadas ao longo do corpo. Chegou e depositou em frente ao meu acompanhante uma carta virada para baixo. Ele levantou a carta, pediu permissão e seguiu-a. Já ouvi o nome dela... de várias maneiras. Mas nunca pensei que aqui estivesse.

Foi então que me apercebi que tinha sido dissuadido de compreender aquele dólmen que já não estava ali. Que brotava no meio do veludo vermelho poucos dias depois de uma flor. Lá em cima não fazem a ideia da ironia que é pensar que as coisas podem nascer deste chão. Para uma alma tão poética como aquela, só podíamos ver aquele dólmen como o buraco do coelho de Alice, ou a moldura do seu espelho: uma rolha na realidade.

Lembro-me de ver umas letras rachadas na pedra... diriam "CAOS"? E... por debaixo? Seria "Liberdade na forma. O possível.", um epitáfio? Cada forma de sepulcro deste nosso ocaso representa um peão no tabuleiro. As almas caem aqui por sorte, acaso ou sabe-se lá. E aquela amante do nosso deus da morte... Eu sei quando vejo a Fortuna através destes olhos verdes.

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