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Todo Inteiro

— tradução de "Tout Entière" de Charles Baudelaire O Demónio, veio esta manhã Visitar o meu alto quarto, E, cobrando por me ver em falta Disse-me: «Quero bem saber De entre todas as coisas belas Como é feito seu encantamento?, De entre objectos negros ou rosados Quem compõe seu corpo encantador?, Qual é o mais doce?» — Ó minha alma! Tu respondes à Aberração: «Como nela tudo é díctame Nada pode ser preferido. Enquanto tudo me assalta, ignoro Se alguma coisa me seduz. Ela explode como a Aurora E consola como a Noite; E a harmonia é muito requintada, A que governa todo o seu belo corpo, Para que a impotente análise Ao notar os numerosos acordos. Ó metamorfose mística De todos os meus sentidos fundidos num! Seu hálito faz a música, Como sua voz faz o perfume!»

A Beleza | O Ideal

— tradução de "La Beauté" e "L'Idéal", de Charles Baudelaire A Beleza Eu sou bela como um sonho de pedra, ó mortais! E meus seios, onde todos se magoam São feitos para inspirar no poeta um amor Eterno e mudo, como este mármore. Assente no azul, como uma esfinge enigmática; Uno o meu coração de neve à brancura dos cisnes; Odeio o movimento que desloca as linhas, Eu nunca choro, e jamais me rio. Os poetas, diante das minhas grandes atitudes, Que pedi emprestadas aos mais ferozes monumentos Consomem os seus dias em austeros estudos; Porque eu, para fascinar esses dóceis amantes, Tenho espelhos puros que tudo embelecem: Os meus olhos, estes olhos arregalados do brilho eterno! O Ideal Não é a beleza que as vinhetas ilustram, Produtos danificados, frutos de séculos desonestos, Esses saltos altos, dedos em castanholas, Quem irá satisfazer um coração como o meu. Deixo a Gavarni, poeta da clorose, Um rebanho a balir belezas hospitalares, Pois

Re:Torn

Não há nada para além disto. E, no entanto, está lá tudo. Chegou o dia em que tive de duvidar da imagem do céu Que é a única verdade coerente. Imaginem uma salina (que existe, juro), com águas tão salgadas e perímetro tão lato que o céu não tem alternativa a não ser deixar-se repetir pela terra húmida. Que tanto o enoja. E tanto nos excita. Foi então que percebi a interrogação do monge budista: se colocares contíguos dois espelhos, qual das imagens produzidas será a mais falsa? E se colocares contíguas duas pessoas, qual das versões a mais verdadeira? Eu nunca me vi reflectido no céu, mas já ouvi pessoas da minha espécie jurar que vêem lá os reis do antigamente. E no entanto, o borrão azul deste céu nublado e branco é repetido, tal como o meu corpo se repete, de pés para o ar, contíguos aos meus. É repetido mas não repete. Não repete, mas aqui se repete. Vim enxotar um estado da alma, vim vomitar diamantes, vim derrotar outro dragão e não tomei alucinantes. Acabei

O que leva o homem

— tradução de "Man Carrying Thing", de Wallace Stevens O poema deve resistir ao intelecto, Quase com sucesso. Vejamos: Numa tarde de inverno o vulto resiste Ao reconhecimento. Aquilo que carrega Resiste ao mais necessário sentido. Aceite-se, então, como secundário (o mal-entendido de um todo óbvio, as partículas incertas de um sólido justo, o primário sem as dúvidas que flutuam como os primeiros flocos de neve da tempestade que aguentamos a noite inteira, a longa tempestade das coisas secundárias), um medonho pensamento que, de repente, é real. Aguentem-se estes pensamentos por uma noite, Até que o que é obviamente lúcido se revele, imóvel, em gelo.

Lidar (Outro)

Aquela nota não podia ser um brinde Desafinava no ambiente Desafiava o anel envolvente Estilhaçava a vontade de tocar. Os anéis, uns ao lado dos outros Empurram para fora Queimam e afogam Escurecem o tom da madrugada Misturam as estrelas em guachadas Que desventram a luz Que perde o calor E que arrefece Em fogo pintado a azul Sobre um caixão aberto Para que toda a gente saiba. É bonito É a vida É preciosa Descobrimos, Descobrimos, Descobrimos... E talvez um dia limpe toda a merda Dos meus sapatos mais caros Até lá Só queria saber lidar Tomar comprimidos Deixar uma nota E saber como terminar.

O Nervo

ao suor frio de dar um passo em falso e o sobressalto do calafrio que escorre pela espinha, essa linha, que definha bem que podes ficar por aí por entre a porta e o postigo vigia-me a vigília da viagem enquanto sibilo as sílabas das adivinhas enquanto encantam cancelar as anedotas enquanto vigoram nas vinhas as vozes atrozes das sibilas ah como tem nervo o corvo e a dama do dique Holandês como se enervam à espera que a Torre caia mas está na calha estoutro trailer para um filme por rodar por rodar como rodaste naquela noite da pista ao printscreen como roubaste por instantes ou eram as paredes da casa de banho ou fiz o pino a mijar ou estava na capela Sistina e vi uma fonte por detrás da primeira cortina não era o feiticeiro que ia a voar com o tufão que veio para levar no vento atento ao evento avento o virtuoso vitupério que concedo conceber e que não é vitorioso nem tenta não deixar tentar ou será que não tenta nem deixa tentar a carne acorda com uma

Esplendor da Lua

— tradução de "Splendeur de la Lune" de Paul Claudel A porta de lã abre-se para a minha cegueira: com esta chave que me liberta, com esta despedida irrepreensível, com uma misteriosa amenidade animadora, com este reencontro fetal, com o coração a explodir silenciosamente de respostas inconcebíveis. Assim, entendo: que acordo e adormeço. Deixei as quatro janelas numa turva noite sombria e agora percebo, quando saio para a varanda, costumo ver toda a capacidade do espaço preenchida pela tua luz, ó sol encantador! Longe de inquietar, o fogo que se levanta do fundo das sombras consome o sono e oprime com chicotadas de luz. Mas não é em vão que, como um sacerdote preocupado com os mistérios, deixo a cama para poder envejar esse espelho oculto. A luz do sol é agente da vida e da criação, nas quais participa a energicamente nossa visão. Por outro lado, o esplendor da lua é par da contemplação do pensamento. Despojada de tom e calor, só a lua nos propõe, a mim e à criação, pintad

Desgravitificar

No excesso de zéfiro Está a prova, em qualquer clima Está o senso de que nada se define Flutua como bolhas Incapaz de sentir o vento E só podia ser assim A navegar ou cavalgar Não há nada de novo sob o azul E voas pela gravidade Cavalgas pelo determinado Franqueias a anomalia Flutuas com dignidade Descansas com a morte Corrompes a espera E por tudo o que é brilho Submerges na luz À velocidade da submersão Ganhas ou perdes a tudo Irradias por outro lado Deixas os naufragados Cavalgas, mas largas as rédeas, Na luz que engole o meu solo Fazes e desfazes-me o mundo Não te curves agora perante regras Êxtase na gravidade Por tudo o que não é e cai Precisas a gravidade Agarras o que esvoaça ao vento Ergues-te à gravidade Ascendes e continuas a subir Alcanças a liberdade Deixa tudo e renova o chão.
— tradução livre de um excerto do capítulo "Ithaca" do Ulysses  de James Joyce O que é que na água fez Bloom, amante da água, fã da água, seu suporte, regressar à cordilheira? A sua universalidade: a sua equidade e constância à sua natureza de perseguir o seu próprio nível; a sua vastidão no oceano da projecção de Mercator: a sua profundidade desatenta na trincheira de Sundam que excede as oito mil léguas; a inquietação das suas ondas e as partículas da superfície que visitam, por sua vez, todos os pontos do tabuleiro do mar: a independência das suas unidades: a variabilidade dos estados do mar: a sua calma quiescência hidrostática: a sua turgidez hidroquinética em marés vivas e mortas: a sua subsidência depois da devastação: a sua preponderância de três para um sobre a terra seca do globo: a sua indisputável hegemonia que se estende em ligas quadradas sobre toda a religião por debaixo da linha subequatorial do trópico de Capricórnio: a estabilidade multi-secular da s
Flutuam, bolhas De sabão, Assimilados Sonhos guardados Da reflexão... Cores que planam Fluxo de silêncio... Capriccios redondos E agora pululam Por mares hediondos. Estouram as cores, Geysers  de spray , E a íris! Reparem... Se deixam cair Sempre que amarem. Hesitantes acordes, Sol-e-dó da maresia... Ondas e rolhas (Choram cebolas) Flutuam, bolhas... E da arriba! Vem um carro! Estalam as bolhas, De sabão, Des-per-di-ça-das... 

Clarão

No desfile dos povos em frente à Deusa Calhou-me uma máscara poligonal O exército de um. E desafiámos lâminas em torno da estátua Da lua feita bode expiatório Paladino, feiticeiro, xamã. Recortámos o contorno às saias do vórtice Sem segunda chance Só o clarão. Os destinos não entreluzem tons do céu A minha prece não permite Deliberada cegueira. Luz o encontro das lâminas das javelinas, Escuda a realidade, relíquia da fantasia, Crescente sono. E não há frente para trás, nem traz a frente, Zigzag do pescoço, as faces irrequietas Dado lançado! Dado lancetado. Cai e torna a cair, fronte que se escama Desliza pelo solo a forte galope Limpa o sangue, irradia de novo.