O fim do abismo

Ficam para trás as ruínas, os espinhos das rosas que lhes tirámos. Ficam para trás os mortos e as memórias que lhes absorvemos. O que resta é o que lá está: as ruínas para que continuamos a olhar sem observar, os mortos que constantemente desrespeitamos pela nossa falta de vontade de viver.

O tempo e o espaço são medidas incompletas sem a emoção. E a emoção divide-se em conhecimento e vontade. Se a emoção desliza da sensação e é corrompida pela idealização, o conhecimento é esse generalizar. Olhar para o mundo pelo espectro das ideias é a constante dissatisfação de ter o que não temos, por não corresponder ao nosso conhecimento das coisas. O conhecimento, a inteligência, é o que nos ancora ao fundo do abismo e não nos deixa escalar em direcção à luz que víamos antes de cair.

Por outro lado, a vontade é o que nos dá permissão. É a emoção que nos faz mover em vez de nos calcar ao conhecido. Que desloca dos padrões desrespeitados pelo confronto directo com a vida. Se continuamos a viver por ideias, se continuamos a colocar filtros em tudo o que nos dão, se uma fotografia deixa de ser a recordação do momento para ser a preservação daquilo que queríamos que o momento fosse, então estamos verdadeiramente presos e a vontade é o que nos liberta de todos esses grilhões do tempo.

Note-se ainda a perfeita simetria do tempo e do espaço para com o conhecimento e a vontade. O conhecimento só nos pode oferecer dados respeitantes ao passado, ao tempo a que se pode chamar já de tempo, à dimensão do que já foi. Olhar para o passado pode ensinar-nos a não repetir erros ou pode construir a paranóia de que os erros são a única coisa que se repete. Estudar história pode evitá-la ou concebê-la por cíclica, quando as repetições são impossíveis. Tenta reviver uma viagem que tenhas feito em criança e descobre que alguns dos sítios que viste já não estão lá, que algumas pessoas já faleceram, que o ar não soa ao mesmo.

A vontade é a dança que nos permite ignorar a impossibilidade da repetição. É a electricidade que corre pelas veias dos nossos pulsos quando estão soltas das algemas mais apertadas. É poder e esse poder é livre, não é determinado pelo passado ou pela conjectura da actualidade. É unicamente o omega que se livra do alfa: é o velho que sabe que já não é o bebé que foi outrora. É sensatez e é a sensatez da acção. É mobilidade desmesurada pelo espaço infinito que se abre em nosso torno.

Se o início das nossas vidas está no limite físico do nosso corpo, então a vida é, já por si, eterna e infinita em todas as suas possibilidades, desde que haja movimento e que esse movimento seja livre. As sensações são tudo o que temos. A idealização que as aflige é (costuma ser) romântica e o romance é tudo o que não há na vida e é precisamente isso que serve: é um reflexo de uma possibilidade de vida. Uma possibilidade irrepetível de vida: pode dar-nos conhecimento, mas de pouco serve para nos ensinar a viver.

Fica para trás o que não torna a ser. O tempo e o conhecimento podem ensinar mas não formar, que tal é a função do espaço e da vontade. As dimensões e as emoções entrecruzam-se para desenlear as possibilidades que nos afligem — todos os abortos que temos de fazer a nós mesmos para continuar vivos, digo, todas as vias de caminhos bifurcados que não podemos tomar por termos de decidir. Tudo o que se antepõe à vida é preconceito, é grilhão, é algema, é medo de viver e é o maior desrespeito pelos entes queridos que perdemos para a morte, enquanto vivemos.


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