Pó Negro

O acaso impera sobre o destino como a marioneta que dança sob os nós que ataram só para o vosso entretenimento. A musculatura e a madeira que une a sua construção flutuam com a música que se ouve sem acompanhar qualquer vontade maior. Não há maior generalização do que procurar corresponder a forma de comunicação da dança à geometria. O fluir do vento influi sobre os movimentos dos corpos; pode abismar as almas mais religiosas, como o pensamento de que o bater das asas de uma borboleta tem resultado na acumulação de tráfico rodoviário às portas de uma cidade.

As peças caem como calha nos seus lugares, como o céu escuro recorta sombras no horizonte à noite. Parece ver-se o peso do manto do céu sobre a terra e a aproximação do sol distingue as silhuetas, levanta o mesmo peso. O que se recorta à luz do dia é tão literal quanto a palavra que se vê. As sombras do passado que descansam desprovidas de coração actuam barbaramente, conversam com a indelicadeza com que se pisa uma flor. Já os que padecem de não ser ninguém, nada mais do que o que são, permanecem na demanda pela identidade. Uma fotografia às suas almas não seria o suficiente para que se assomasse a vaidade da inglória busca.

Esta teoria foi como acrescentar uma guitarra a uma composição para um piano desafinado. Com uma maior precisão na distância entre os dedos que marcam o acorde e um dedilhar igualmente preciso, harmonizados com os sons desafinados desencadeados pelas teclas, parece construir-se um som mais claro e afinado do que qualquer outro antes ouvido — podia até dizer-se natural.

E é, na outra mão, um inusitado uso do pó preto explosivo; nessa mão de um piromaníaco nunca antes iniciado na física do fogo posto — é que a magia negra permite todo um outro controlo da direcção e da intensidade. Uma vez posto o fogo é o 'tão e agora? Mas se o controlo da explosão for bem conseguido, que permaneça dentro do corpo e ordene a implosão, a casca velha sai como que lubrificada.

Reflectir no passado só pode ser feito de fora, como quem olha pela janela para uma família de falantes de uma língua que desconhecemos, sobre a qual não podemos de modo algum actuar, para além de causar confusão. Reflectir no passado só pode ser feito de cima, como a visão de um pássaro a uma velocidade constante, com um objectivo definido, que vê árvores, rios e montes passar, sem uma vez hesitar, sem uma vez parar de seguir.

Uma vez deixado o manto de parte (esse fardo), o peso reduz-se ao nada que se intromete nos meus dedos a dançar pelo ar. Uma pessoa até podia dizer que quase levanta voo. Que os mundos se abrem como que portas para com as quais o passado se afigurava uma parede com o espaço de visibilidade de uma fechadura, para o outro lado. Que o coração seja a chave que te guia. Estende as mãos e abre as portas.

Certifica-te que as fechas por detrás de ti, as correntes de ar podem, com as suas ventanias, fazer as portas bater. É um susto — sempre põe o sangue a mexer. É o acaso que impera sobre o destino.


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