Difracção

3ª Cena do Acto II: Ao espelho

(O palco vai girando consoante as personagens vão falando.)

Voz de fora do palco: Não deixavam falar ninguém, mas por outro lado...

Eu: Como é que se consegue o equilíbrio entre falar demais e falar de menos? Entre a histeria e a monotonia? Falar demais sobrecarrega de sentido. Falar a menos não define objectivos. Os adjectivos que acabaste de empregar circunscrevem a pessoa que descreve. Um rei ordenava. Um vilão frustra.

Caos: Um manipulador determina. Então é fácil entender que o Caos é quem frustra as ordens, mas acrescenta-lhe estes outros juízos de valor como "verdadeiro Rei" ou "falso Vilão" e verás como se forma uma claque de futebol. É normal encontrar a maldade na vingança da dor, no desengano dos enganados, no caótico que a ordem aparenta não ter. A perfídia acaba por ser uma resposta mais natural à sociedade do que os sorrisos que pomos, filtros que antecedem os filtros com que ainda vamos maquilhar mais a realidade. E se não era um sorriso que calçaste ao início do dia, aquele que editaste oferece menos resistência ao descalçar.

Eu: E o que é que se faz quando as sensações não passam de sombras de sombras da realidade? Sorrisos filtrados pela deliberação da cor. Ao menos em fotografia podemos editar a vida para que pareça melhor do que é. Mas isto é o meu espelho. O meu espelho! E as minhas motivações tendem a ser baseadas na vingança, por muito amoral que isso te pareça. Estou pronto para enfrentar este dilema: o espelho não é grande o suficiente para nós dois. Eu entro e o Caos sai.
(As personagens trocam de lugar.)

Eu: Mas havia um twist final!
(Do lado de fora do espelho, Caos olha para a caixa de Pandora que tem nas mãos: é um holograma bidimensional que funciona como reflexo da que está reflectida no espelho.)

Eu: O Caos e essa caixa confundem-se. É que tenho um medo que o Caos não pode tirar. O medo de libertar a ordem que tanto desejam. Ordem... que nome arrogante, que nojenta autonomásia do imperativo. É como chamar a um filho de "Imperador dos Imperadores". Puro controlo sobre o que os outros fazem ou podem fazer. E é isso que eu não desejo. Eu posso ter ficado extasiado enquanto via o meu reflexo tirar-me a caixa e sugerir uma troca. Mas também tenho forças suficientes para agarrar a caixa, enquanto Eu entro e o Caos sai. Um reflexo não pode tomar conta do corpo que o causa.
(O Caos sorri.)

Caos: Continuas a agir como aqueles reduzidos a uma vida em pausa do país das histórias que ficaram por contar. Continuas a acreditar em leis que nos domesticam? Continuas a resistir?

Eu: Continua a falar que só te violas a ti. Eu acabo de te mostrar a porta. Agora que já não sou Rei vou ser o primeiro a atirar uma pedra! Não vou ser a vítima mas o primeiro a partir o espelho. A quebrá-lo e deixar os fragmentos dispersos pelo chão. Se vou ter um passado, quero que seja de escolha múltipla, como os estilhaços. Um doppelganger só morre com o fim do original. Que tipo de morte será a perda de necessidade de um reflexo?

Caos: Bem, então vemo-nos deste lado, não é?

Eu: Desse lado? Porquê? Não entendes que estou exactamente onde quero estar?
(Há uma mudança do comportamento do Caos. Algo não está a correr como pretendia.)

Caos: Espera... Mas para além de me tirares o capricho de abrir a caixa de Pandora... Que mais é que podes ter planeado?

Eu: Planeado? Eu não sei o que fazer com um plano. Eu faço coisas. Para quê criar esquemas para manipular o nosso pequeno mundo? Não vão sair das nossas cabecinhas, não se vão concretizar. Os planos só vão criar jaulas dentro de jaulas e depois os pulmões custam a respirar. São os manipuladores que nos põem onde estamos. Eu só fiz o que faço melhor. Peguei no "plano" e deixei o ruído da realidade moldá-lo. Olha só do que fui capaz de fazer, mantendo-me em silêncio no país das histórias que ficaram por contar? Caíram pontes! Deu tudo em louco. Introduzir entropia, fazer variar a ordem estabelecida: é então que tudo se torna Caos! E sabes o que é que acontece no Caos? Justiça. O Caos nunca decai.

Caos: Então a tua resposta... a tua motivação?

Eu: São todos os crimes que planeaste e que não cumpriste. Devia mudar-te o nome para Soberba, porque agora tens como concretizar o teu Caos. Podes ser o Caos... mas Eu sou o autor desta história. Eu posso estar dentro do espelho, mas rapidamente vais descobrir quem é que está na jaula de quem. Agora joga o teu jogo e sai da minha frente, enquanto eu fico a ver a tua integridade desfazer-se, o Caos a acrescentar-se.

Caos: Deves ter algo em mente. Deves ter algo intencionado. É sair do espelho que queres? Isto é psicologia inversa?

Eu: Mas porque é que eu quereria isso? Eu estou precisamente no tempo e no espaço em que quero estar. O que resta é deixar o teu Caos à sua sorte. Eu não quero sair deste espelho! A partir daqui o teu reflexo vai sempre responder sucesso a tudo aquilo em que vais tocar e fazer decair. A Sorte está a chegar para devolver tudo o que o Caos levou.
(a cortina vermelha fechas-se e volta a ver-se o título indentado Caso Caos.)

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