A janela, o mergulho e a janela

Como é que se volta a uma vida passada? Quando dentro da casa só vejo um jogo de fumos e espelhos, miragens, promessas e mais espelhismos olho pela janela. Mas quando olho para fora da janela, só tenho dores de cabeça e os ventos dão-me vertigens.

Como é que se retoma o caminho de ferro depois de ter descolado num avião? Cada casa é um esconderijo, cada um tem a esconder o que tem a esconder, não há cofre sem o que tem dentro. Ou melhor, há, mas que surpresa se pode ter na indecisão? De que me vale um gato vivo e morto se não o posso enterrar nem brincar com ele? Quiasmo desnecessário.

E onde é que se vai com esses bens materiais de capoeira que se escondem? Em que é que o ter tem mais de ser-se uma pessoa que o sentir? A posse é um acrescento, uma aproximação que faz analogia entre a proximidade gravítica em torno de uma pessoa e aquilo a que se dá o nome de identidade, assumindo a sua existência, como um biólogo a falar de unicórnios.

A sensação não acrescenta, altera — é reacção química entre o corpo e o mundo. A constante sensação de inconstância junto da sensibilidade de cada poro do corpo dificultam a distinção do sentir, diluem-se na oferta aos cinco sentidos, pelo que a sua relação com a identidade é ignorada, por se evidenciar difícil de reportar.

O que é que o mergulho tem de melhor do que esperar o bronze do sol? É óbvio que um mergulho no ar é frustrante, como o que daria se voasse com os ventos à janela. Primeiro, a mudança é sensível em todo o corpo e é passível de ser reportada, no caso da água, no caso do falecimento nem sei se poderia oferecer feedback. Prefiro ter um pé na sensação do que dois na promessa.

Não obstante, agradeça-se o brilho ao sol, um mergulho em tempos impróprios pode ser seguido de uma sensação de congelamento e, depois, de outra de hipotermia. Não dá jeito. Ao sol é aprazível. Louve-se o que nos ilumina o caminho, que permite conhecimento prévio aonde posso pousar o pé. Na horizontal está-se mal.

E outro brinde (lá vai um trago de água num corpo submerso que anseia por respirar; vale que a água é clara, vide as razões acima) à boa vontade, a boa porque é pretérita e efectivada — a acção que surge por reacção à sensação, saber onde não meter os pés (por exemplo, pela cabeça). Está a entrar muita água; vale que não se trata de um navio, mas da memória; foi por isso que fechei a janela.

P.S.: Não o mesmo, nunca o mesmo. Nunca se volta o mesmo, o mesmo nunca volta de todo nem o todo. Talvez na mesma.


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