parkour

O génio só tem lugar no que tem de pragmático, não no que tem de ético. Uma vez que os grandes desenvolvimentos levados a cabo por um génio dependem do pensamento desviante (do inesperado, em função de dar um grande salto em direcção ao futuro), os seus comportamentos não devem ser punidos por terem sido, se não a causa, um acidente no percurso ao desenvolvimento. Não é função do génio pedir que lhe sigam os comportamentos, mas que lhe admirem a forma como devolve arte ou técnica (no modo como as enaltece) do vocábulo primeval e polissémico technè. Estes desenvolvimentos não são políticos, são estéticos ou tecnológicos, fazem a sociedade progredir sem ligar a quem dela faz parte. É, portanto, inútil associar a vida do génio ao papel de um modelo social, pois a sua única utilidade tem a ver com a sua finalidade, é o que o génio tem de prático. A sua vida foi um percurso em torno do desenvolvimento.

Acabar, não com o culto do indivíduo, mas da própria ideia de indivíduo, é esperar que todas as vidas sejam iguais, quando a única parte que têm por estrutural é a póstuma aplicação dos vocábulos "princípio, meio e fim" a fases de períodos temporais diferentes, intensidades, intervenientes, ideologias — nada numa vida é igual a outra. Clinamen: o constante decair dos átomos não permite a repetição, não permite a coincidência, não permite que se exija a uma outra vida que seja como a nossa.

Apagar isso é apagar com o fogo do acaso que alumia a vida. Com o pulsar do coração face ao inesperado, a ansiedade antes da nova esperança, a coragem antes do sucesso. Apagar o jogo da chance é perder todas as chances, é seguir o destino e cumprir cada profecia. Se ligamos assim tanto às profecias, porque não cumprimos tudo o que nos diz o horóscopo? Esta semana dá jeito comeres carne vermelha, diz um deles, mas tu és vegetariano, dizes tu — que importa o que dizes se o teu futuro está aqui escrito? Não te podes desviar, olha lá o que vão pensar de ti se não comeres carne vermelha esta semana? Seres vegetariano é quereres ser mais que os outros, é armares-te em superior por uma peculiaridade individual tua. Mas, claro, entenda-se que o que acabei de escrever é sarcasmo ou que, pelo menos, não seria eu a dizer estas coisas, mas outras vozes comuns.

Retomando a facécia: se não há certezas de quase nada na vida, se não somos omniscientes o suficiente para saber se vamos ter resultados nos nossos empreendimentos — e se a única certeza que temos é a ansiedade causada pela dúvida de falhar em frente a toda a gente, então a culpa do falhanço está no culto do comum. Por culto do comum, refiro-me ao previsível, à vida dentro dos padrões que não se podem ter. Porque haveria a estatística de criar uma ferramenta tão útil (se não a mais útil de todas as humanidades e ciências sociais) como o desvio padrão?

Por estes motivos, fazemos uma associação supostamente lógica do erro, da errância, do maravilhamento e do espanto constante que podemos ter durante a verdadeira vivência da vida, com o desvio moral e, por ligação, ao legal. Desviarmo-nos da norma, que é coisa que todos fazemos (creio que não é poético — nem ético — referir-me a flatos) não pode ser assim demonizado. Ó senhor, e o progresso? Ó senhor, e o desenvolvimento? E a evolução? É um movimento em falso durante a valsa que nos obsta ao enamoramento?
Querido eu de há quatro anos atrás. Acabaste de lançar a mais hórrida das maldições para garantires a tua felicidade. Kudos, pelo egoísmo, garantiste o teu lugar à mesa ao jantar. Esmagaste o teu coração para ter tudo, mas devo avisar-te que ainda não foi esse preço o suficiente para pagar. O que vais fazer vai deixar um vazio muito difícil de preencher e ainda agora não te posso garantir que o tenha preenchido. Só parece piorar. Os sacrifícios e os pactos com o diabo que estás a fazer servirão apenas para saberes de que nada servirão. A magia vem com um preço e o preço do que desejas não é menos do que tudo. E, de um modo ou outro, sem saberes como, posso garantir-te de que o conseguiste. Que subiste um degrau em direcção ao sucesso. E subiste um degrau que te deixou mais pequeno do que todos os outros. 
Chega a um ponto em que seres mais alto é uma ofensa; em que seres europeu é uma ofensa; em que teres 23 anos é uma ofensa; em que seguires os teus sonhos é uma ofensa. Que conclusão se pode tirar da ofensa de existir em liberdade? Em não me ter cingido ao que me diziam que tinha de fazer, ao não ter comido carne vermelha quando quis ser vegetariano? Existe liberdade de expressão deste lado (se a vida for uma valsa e a minha expressão a dança). Desse lado existe liberdade da sensação de ofensa. Repare-se que sentimos através de sensações e que a reflexão não faz parte das sensações, é uma segunda flexão da sensação, uma sensação em segunda mão, mastigada pelo cérebro. O conhecimento histórico não é sensível, é inteligível. Se o histórico pesasse tanto como o sensível, eu entenderia a ofensa.

Mas o que ofende é sermos comboios nos nossos carris mas com as rodas em completo descontrolo. Destravados, em rumo à ruína. E o melhor de tudo. E o mais ridículo. O que mais me apraz. É que ninguém se vai lembrar de vocês, porque o destino não é deixado à chance.

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