A Espiral da Morte

O taberneiro trouxe-me para uma piscina que se abria no casino para todo um rio subterrâneo maior. Este rio é o Acaso e tem saída para quatro afluentes: o Olvido, a Falência, a Vitória e a Regeneração. Estas quatro saídas (ou re-entradas) são sorteadas, mas tendem a acertar afincada e duramente nos réus do juízo. No entanto, neste nosso ocaso, sublinhar que algo mudou é tautológico. São águas que te levam em direcção ao pós-vida, mas ao contrário de te aperceberes pela passagem das águas que algo mudou, não são as águas que passam por ti, mas sim tu por elas.

O único julgamento final, como disse, é deixado ao acaso. E o acaso é produto de uma ocasião em que o movimento de cadência leva à queda dos peões no jogo. Na vida movemo-nos num gigante tabuleiro de xadrez, onde, para os deuses, só existem peões de vidro translúcido. É na vida de cada um que se decoram reis e pintam tabuleiros e peões de torres, cavalos, bispos ou rainhas. Neste nosso ocaso não existe a linearidade do jogo de xadrez: não existem lógicas divisivas projectadas por regras ou cores. A morte é um jogo de acaso. E acima de tudo: todos os mortos são iguais.
"O acaso não escolhe, o acaso propõe"
- José Saramago
O rio principal, o Acaso, resplandece a tons de verde esmeralda. Por este rio, o barco do caronte leva as almas e toma uma direcção consoante os quatro afluentes. A vermelho o Olvido, a preto a Falência, a azul a Vitória e a branco a Regeneração.

E o depois é o de antes. O Olvido opõe-se ao amor e propõe uma eternidade no casino. Por aqui seguiram Eurídice, Maria Madalena e Julieta, e as três acabaram neste nosso ocaso a servir às mesas e a jogar roleta. À Falência opõe-se uma vida de inocência e propõe o retorno da alma viva ao corpo em decrepitação. Por aqui seguiram grandes tiranos, Prometeu e Orfeu. A Vitória presume uma vida de coragem, despojada de arrependimento e propõe o retiro da linha do tempo. Podem encontrar-se Hércules, Édipo e Judas. E a regeneração pressupõe a inteligência na vida e propõe o regresso ao temporal. Por este rio navegaram Gilgamesh, Ulisses e o fidalgo Quixote. Não parece fazer sentido que a vida se reflicta no acaso, pois não? Quem diz à Fortuna que Julieta viveu amor? E que Judas nunca se arrependeu? Que faz Quixote no rio da regeneração?

Ao longe há um farol que emite a luz verde que dá cor ao Acaso. É tão simples quanto isto: ninguém sabe viver. Aquilo que projectamos ordeiro é irrelevante para os julgamentos que aqui se fazem. O pobre Prometeu que viveu o sofrimento vai levar uma eternidade dessa vida. Mas não só: todos nós.

Há uma dica que te posso dar: nada é um ensaio para o que vem a seguir, tudo isto é o real deal, portanto pega nesta mão de cartas e anda aproveitar enquanto esperas. No retorno somos obrigados a esquecer-nos de tudo. Bem e mal não são actos nem natos: são produtos de contingências recorrentes que se organizam face às perspectivações que do acaso são feitas. A verdadeira morte é a vida sem intenção, liberdade ou movimento.

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