Fama Engarrafada

"Toma só mais um golo, prometo que está quase a acabar". O problema da fama engarrafada é que só quando consumida é que faz ver o que traz no fundo. É outra deusa voraz, presa à vaidosa ideia romântica da mulher demoníaca. E nada mais a prende. Não é bem ou mal, é para além da moral. Ver julgamentos apenas no beijo da despedida: o que é eternamente trocado com a terra e os vermes. Mas é apreciadora dos esforços que são feitos por ela. De cada intento suicida em consumir a sua poção.

Em teoria, a fama engarrafada actua lentamente no corpo, pode paralisar ou fazer esquecer motivos, criar uma dor tão grande que distrai dos objectivos ou incapacitar, dê por onde der. E há um carrasco que ta dá de beber, trago a trago, cálice a cálice. Ele olha-te nos olhos e faz esquecer a luz verde. Deixa-te apenas a nadar no teu medo do desconhecido. E obriga-te a beber da mais violenta forma. Antes que possas contestar, já a estás a provar.

Ouves os iniciados brindar saúde à tua volta, enquanto uma severa dor abdominal começa a picar. Alastra-se pelo corpo e a ansiedade passa a ser a medida da respiração. A garganta começa a corroer, como se te escrevessem com facas, da faringe para fora, a palavra sucesso na carne. A cara espasma, como se dormisses por um pesadelo horrível. Perdes o sentido das pernas. E o cálice continua a verter pela tua boca, já sem garganta, o esqueleto a aguentar o trago.

Imploras o fim, mas lembram-te de que o tens de fazer. Nunca o medo foi tão escuro e as vertigens mais altas - e a poção a descer. As lágrimas e o suor misturam-se com a saliva e o líquido esverdeado no chão. Ouves rirem-se à tua volta, mas ninguém está lá. A não ser o carrasco que te diz "isto vai parar, mas só se continuares a beber". Não gostas e não queres. Pedes para parar, mas toma mais um pouco. "Falta pouco, falta pouco, tens de aguentar".

O delírio. Odeias-te. Repulsa-te o reflexo na poça dos líquidos deixados no chão. Tens a cara mais irreconhecível que já tiveste. E ele puxa-te a cabeça pelos cabelos e dá-te mais a beber. Pedes que pare, mas "só continuando pode parar". Pedes que pare, pedes que pare, que não, que não, não podes e não consegues. Mas sentes aquela fel continuar a violar-te. Os teus gritos dissipam-se nos ecos dos risos que não estão lá.

"Está tudo bem, está tudo bem", reconheces uma voz confortante, mas não saberes de quem é faz-te enlouquecer, porque o líquido continua a correr e a corroer. "Não está a acontecer nada, estás seguro, não é real, prometo que não é real" e isso só te desorienta mais. Sentes corpos invisíveis - que remédio, se os olhos já estão afogados no pranto que sufocas e engoles - cravarem-te com um chicote de unhas nas costas. A desidratação intensifica o ardor constante e as dores excruciantes.

Pedes que te matem e o carrasco promete que será o próximo cálice que o vai fazer. E quando o bebes, perdes os sentidos, como tanto ansiavas. E o pior é quando descobres que não eras quem bebia, mas quem se ria. Que não existia carrasco e que observavas um amigo matar-se, desse teu pedestal: a reputação.


~CAOS


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