O caos, a ordem e o tempo

Eu tive a memória de um futuro perdido, em que o sol se punha sem raios, o céu era cinzento e no vento se sentia o odor a cripta. A respiração ansiosa não descansa, receia vê-lo concretizar-se.

Quem lida com o tempo descobre logo um paradoxo eterno: os momentos nascem sabendo que vão morrer antes de se sentirem vivos. O seu único propósito é o de morrer e tornar a morrer para se substituir por uma versão desprovida de memória. Sempre que se aceita a sensação de um momento, vende-se a sensação do anterior e da sua alternativa. Ironicamente, só quem renuncia ao tempo (à sua contagem ou organização) o pode apreender realmente.

O tempo pode sentir-se de dois modos. Do modo que é contado pelos vencedores, que se aliam e auto-nomeiam de heróis debaixo da asa da deusa Ordem, que generaliza, faz estereótipos, calcula médias, modas e medianas e ensina à sociedade como se deve viver. Ou, de outro modo, o tempo pode ser sentido tal e como é, na mais pura autenticidade do mundo a que subjaz e, nesse caso, o deus narrador é o Caos - que não pode ser menos que um vilão assustador.

Sei pouco desta minha aliança. Mas o Caos permite que se destrua o passado. É a personificação da maré que apaga os passos, do pai Cronos que, sendo mais velho e actual, come os seus pequenos bebés, novos e imprudentes. Mas os comuns, que lidam com o tempo, habituam-se a comer-se a si mesmos e a dar lugar aos que vêm a seguir. Do que sei, a Ordem pede que se ergam monumentos e façam cerimoniais fúnebres ao que já passou. Os seus seguidores são hipnotizados por sítios perfeitos, paraísos artificiais, por pessoas que se querem esculpidas como às estátuas de mármore: silenciosas, imóveis, ocas - mas dignas de uma beleza vazia. Face ao destino comum, a Ordem é seguida por zombies que hipotecaram a sua vontade de viver, esfomeados das suas futilidades anedóticas. Então o Caos é o único aliado na escolha da verdadeira verdade das coisas a serem contadas.

Conto, no tempo, uma quantidade de regras acerca do passado:
Para viajar ao passado, há que renunciar ao corpo e desvelar a alma;
Só se viaja para um tempo em que uma versão de nós nos espere;
Numa viagem não se pode mudar o que já está determinado;
Quando se volta, não há traços da viagem na memória;
Mas a experiência do passado toca o coração e influencia novas escolhas.
 e uma série de axiomas para o futuro:
Cada vez que incorremos no futuro, vendemos a sua alternativa;
Cada vez que se realiza um desejo, o sonho de outrém fragmenta;
Cada vez que se altera o futuro, o passado também muda;
Cada vez que o futuro se escreve, os videntes cegam;
Cada vez que um vidente vê o futuro, vende a sua alma. 
As chaves do tempo vêm com pesos. O de espalhar as sementes da tragédia na vida dos outros sempre que lutamos pelos nossos sonhos. O de decidir quem vem e quem fica sempre que as águas têm de tomar um novo rumo. Estas responsabilidades não são demasiado grandes?

Uma alternativa seria barrar os rios do tempo, colocar uma rolha na clepsidra, quebrar os fundamentos da história. Se removermos o tempo e o cogitar pelo futuro, resta-nos a eternidade. E a eternidade permitiria levar a cabo infinitas possibilidades que, num universo com tempo (e com o tempo contado) não deixam de ser apenas o que são: possibilidades. No tempo, cada novo presente traz consigo mil e uma mortes do que poderia acontecer. Na eternidade, não haveria morte, nem vida real, e os que a alcançaram só quiseram renascer, para regressar. Ninguém quer a imortalidade, no fundo, só ansiamos pela realidade. Vendem a alma para se deixar cegar e agora estão arrependidos da escolha, do negócio e do resultado. Mas o Caos quer algo diferente, algo mais que a vida, a sua sensação.

E porque sei que não é a magia que falha, mas sim as pessoas, aquilo que eu vou lançar não é uma maldição para corrigir o passado. É uma segunda chance para sentir o presente.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Estalactite

Antígona de Gelo

Furacão de Esmeraldas