A inocência e a perversão

1ª Cena do Acto III: Na praia

(a cortina vermelha reabre, no centro do palco está sozinho um corpo de costas, sobre o que parece ser um areal cortado pelas ondas que o banham e lhe alteram a fisionomia. a água circunda todo o palco que é circular.)

Caos: Estar aqui faz sentir o falhanço, o insucesso respiratório, a tortura de água. Aperta-se o tempo e abre-se a ferida, escoa o líquido esmeralda pelos furos do penso e tinge-se o corpo de petróleo. Não, o Caos não funciona aqui.

Voz de fora do palco: Tudo erra, mas só se aponta. Tudo era e já não se conta. Tudo erva, mas sabe a ponta.

Caos: Se vires o termómetro, pede-lhe a minha febre. Remove-me os parâmetros, tempera-me com mercúrio. Faz daquele pigmento a cocaína turquesa, o mesmo pigmento azul que sustenta este figmento. A lastimosa dificuldade lastimável e o inestimável: a esperança de um coração sem ninguém. Para que se hão de resolver os enigmas, se o problema é sempre esse: a viagem é dura para os escombros de um santo.

Voz de fora do palco: Como é que se caminha da indefinição à identidade? Da convulsão ao despedaçar? Como é que se apresentam os monstros que degolámos em cima da lareira? Como é a culpa o peso dos outros, se aceitá-la devia ser o peso de ninguém?

Caos: Choro por não aprender e saber que, não importa o quê, eu vou suceder?
(o palco roda 180º.)

Eu: Lembras-te da distinção entre facécia e autenticidade? Pois há uma sobre-determinação social para a mesma, nos adjectivos inocente e perverso — e como todos os binómios são flutuações. A máscara social nunca vai admitir uma culpa, a máscara vai sempre falhar sem admitir, porque a culpa vai ser sempre dos outros, nunca das contingências que a sorte proporciona ao indivíduo. Por outro lado, a autenticidade vai ser sempre punível por lei, porque simplesmente não se pode. Não se pode ser assim, há sempre que duvidar, como é que se despe uma pessoa da roupagem social que tem se é tudo o que tem? Se tudo o que tem são os papéis que escreveu mentalmente para nunca desempenhar? É que a autenticidade tem em si o indeterminável caótico que a sobre-estruturada facécia nunca vai ter.

(a maré começa a subir e a ocupar o lugar da areia.)
Eu: Então é preferível dizer 'por favor' e 'obrigado', mas disso também a autenticidade é capaz. É preferível não admitir o que realmente se sente, para depois se pedir o perdão a Deus daquilo que mal fizémos — e as pessoas? Porque não são dignas as pessoas de lhes pedirmos perdão? Mas são todas dignas de que lhes apontemos os dedos. Nunca errei. Não, nunca. Nunca matei, esfolei ou sequer toquei num corpo que não o meu. É claro que ninguém vai acreditar quando o digo. Mas ninguém me vai dizer nada por dizê-lo. É como se reescrevêssemos as personagens que somos a cada ponto da peça — o que não é indigno, pois não existe dramaturgo. Mas as personagens que desde há muito nos acompanham podem localizar essas incoerências. Já todos matámos, já todos esfolámos e já todos mentimos. Nunca assumimos, porque a única coisa que se assume são o que as outras pessoas fazem na cama e o quão falhadas são ao fazê-lo. E é disso que se tem medo? São assim tão intelectuais da espécie humana que o animalesco é motivo de comentário? Se só sabemos o que fazemos nos papéis prescritos da vida em sociedade, os primeiros a morrer são os nossos próprios caos, os que temos de esconder tão bem, porque a ordem é que está estabelecida.

(o palco torna a rodar 180º. o corpo está agora submerso até ao peito e notam-se as dificuldades de movimento.)
Caos: Eu não sou o Caos, sou o que resta. Até agora as curvas não me cuspiram, só se engasgaram e eu começo a sentir-me o dragão de uma masmorra. Então tomo os medicamentos, tiro umas férias e vou ficar bem. Por favor, fecha as torneiras do outro lado do espelho, tira-me daqui. Estou feito? Estou bem? Sou um falhanço na vida? Não quero uma terceira ronda para foder tudo pela segunda vez. Presto fidelidade a quem me fez e talvez os livre dos sonhos selvagens a que almejei. No fundo, no fundo, neste fundo, esta vida não me é trono que valha. A facécia que esqueça a máscara e o espelho, que a lança é o símbolo dos homens. E deixa-me dizer-te: eu tenho mais potência que um tanque, tenho mais pólvora do que a guerra e faço correr menos sangue que um hospital. Pára as águas, por favor, que eu vou afogar-me. Deixa-me descansar um pouco do silêncio, eu não aguento tanto tempo. Deixa-me em paz, eu odeio-te. És um homem psicótico se tens de afogar o teu próprio reflexo para viveres contigo mesmo! Não há perdão de Deus!
Venham os fiéis, os felizes e os triunfantes, algemem-me a cada onda que embate.
Venham os fiéis, os felizes e os triunfantes, eu sou o Caos que sobre.
Falam, falem, continuem a falar, eu desafio-os a falar mais, já fumaram mais do que deviam, já me consumiram mais que a carne que tenho, talvez o sacrifício deste corpo te permita alguma coisa, mas a lembrança vai continuar e o peso vai pesar.
Choro por saber que, não importa o quê, eu vou suceder?

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Estalactite

Antígona de Gelo

Furacão de Esmeraldas