Pegar fogo à cena

2ª Cena do Acto III: Na praia

Um caixão de vidro é carregado por cima do público e até à água. Logo, Eu pego num arco, ateio fogo à flecha e lanço-a ao ar. A órbita descrita é quase perfeita, uma subida seguida de uma descida. E com elas o dénouement desta história que já não está por contar. É o fim do Caos, no fim deste abismo. É aqui que vamos deixar as cinzas do sufocado afogado. O público aplaude e agita lencinhos brancos como quem faz adeus. O caixão arde no lento rebentamento das ondas.

(ouve-se o som de uma trompete estridente ordenar a paragem da peça.)
Que som é este de uma trompete que faz hesitar o seguimento normal das coisas? E quem é que tem a dignidade audaz para fazer parar um funeral? Que sucesso se pode esperar de uma tal decisão feita atitude?

(entra uma pessoa de calças cremes, T-shirt entalada nas calças e óculos à ponta do nariz.)
Encenador: Pois, nem mais nem menos do que o encenador. Faço-me anunciar deste modo, com a pose e a compostura de um rei do drama. Quero dar fim a esta tolice a que não dei permissão. Não está escrito que é o Caos a morrer.

(há ruído de fundo, murmúrios no público, dúvida acerca da desejabilidade desta intervenção, visto estar o público a duvidar dos finais que lhes escapam às expectativas.)
Público: Não está? Que tipo de peça é esta em que o vilão não é punido? Ele já ali vai e o fogo começa a espalhar-se o pelas arestas do caixão.

Encenador: Uma que não é um filme da Disney, uma na qual se trabalhou demasiado para ser este o desfecho a dar-lhe.

Eu: Sabes perfeitamente que tem de ser como tem de ser. Que tipo de espectáculo falhado queres proporcionar a estas tristes mentes que nunca vão ter uma história para contar?

Público: Está a insultar-nos?
Encenador: Está quieto e calado, nunca soubeste as falas como deviam ser. Vai ajudar o teu irmão, não tem de estar preso num caixão.

Eu: Como devia ser. Eu é que sei é como as coisas aparentemente são. Ninguém o vai ajudar, primeiro porque morreu afogado na cena anterior, como pensas recuperá-lo?

Encenador: Estás então a dizer-me que mataste um actor? E o público sabe disso? E como é que o fizeste?

Público: Uma festa só é uma festa quando alguém morre. Esta festa é divertida. Nós estamos a apreciar a festa.

Eu: Deixa as coisas procederem como têm de ser. É demasiado tarde para voltar ao plano. Não é agora que vais passar a ideia de que o destino nunca é deixado à chance. O destino tem de ser o que queremos dele fazer.

Encenador: Pobre protagonista. Mataste o teu irmão e queres dizer-me que tal acto fazia parte do destino que queres ter? E o público? Não o censura?

Público: Nós até estamos a gostar. Não é todos os dias que se vê o funeral viking de alguém que não tem direitos.

Eu: Uma pessoa que se exilou a si mesmo como o Caos... Que direito tem à vida quem não a ama? Quem não tem vida para contar sequer? Preso no espelho, preso na ansiedade. Na ansiedade de se libertar da prisão que nunca teve. Neste ponto das despedidas, mais vale acendermos mais um charro e deixá-lo arder até consumir a última cinza do que resta — O Caos sempre disse que era o que restava. Não foi por isso que se tornou numa solução. Até a imagem que tentou substituir Dorian Gray acabou por cair e partir-se — e uma imagem precisa de imaginação.
(Eu acendo um charro. o Público estende a mão, que Eu enxoto.)

Encenador: Tolo. Este homem era o retrato de tudo o que podia ser. Não existia quem corresse melhor a maratona pela fantasia do que ele. Imaginação era tudo o que era. Imaginação sem pertença.

Público: Porque não tinha nada de fazer o que fez. Ele dava-se por Caos. Quem é que de livre vontade aperta a mão a alguém tão decadente?

Encenador: Literalmente todos vós e as vossas negociações sociais. Os pactos com o diabo. Enquanto o Caos era o espelho, o Caos só repetia o que se fazia diante dele. A dança é a mesma e o dançarino é quem está reflectido.

Eu: Sai do meu palco e deixa-me terminar o que comecei.

(o encenador acende um fósforo.)

Encenador: Claro. Mas visto que esta peça é a maior vergonha da minha carreira. De que vale deixar que a contem? Salve-se o público que já saiu. As portas fecham-se. O fósforo cai ao chão. Todo o pavilhão entra em combustão. A única coisa que sobra (a chance que sobrevive ao destino) é um papel embrulhado onde está escrito não matarás a cursivo.
(fecha-se a cortina, por fim.)

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