Fogo & Sonho Tribal

A perda da imagem num mundo que se rege pela aparência, pela estesia, resulta numa desmistificação do corpo morto, que se vê transfigurado pelas chamas. O pó do corpo, agora desvirtualizado, perde toda a sua iconicidade: o signo-corpo está por toda a vida, pela identidade, atordoando-nos num corpo imóvel, invivo. O signo-pó, por outro lado, perde toda a sua conotação identitária, a imagem passa a ser a de um tributo à identidade, essa, que se esvaiu do corpo. O pó perde a capacidade de nos assombrar fazendo-nos questionar sobre a presença ou ausência do ente querido. Mas não nos pode assombrar, o original transfigura-se num simulacro, infundado, mas que implica totalidade e mesmidão material.

Se vivemos com o recalque do sonho primal da possibilidade de sermos assombrados, confirmamos que é à essência que se deve ser prestado culto. Ao fim, ao cabo, a formação da identidade resulta da intertextualidade tecida entre as nossas vidas e as dos nossos entes queridos. O corpo é o veículo da nossa anima, um casulo significante que nos acorrenta ao mundo da empiria, um pé que nos passa a rasteira na demanda pelo mundo inteligível. E pela estética vivemos enganados.

Deixemo-nos de idiossincrasias improváveis e teológicas, já não nos governa o temeroso desconhecido de dimensões enigmáticas. A religião é um repositório filosófico para o medo, medo desse sonho primal do temível velho de barbas, o violento chefe de tribo que recalcou os arquétipos da psique da espécie. Não há que temer esse deus-obscuro e incorpóreo, nem fogos-fátuos, zombies ou fantasmas desencorpados ou resultantes de partidas do cérebro. Só cá estamos nós a tropeçar em nós mesmos.

A dor e o corpo são juízos demasiado terrenos para com eles nos preocuparmos.

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