A palavra de Pandora

2ª Cena do Acto I: No país das histórias que ficaram por contar.


Dediquei maior atenção ao último parágrafo da nota do Dr. Jekyll, que levava na mão:

"Passou uma semana, termino esta nota sob influência do velho soro.
Esta é a última vez que Henry Jekyll pode pensar os seus pensamentos
ou ver a sua cara, ainda que alterada, ao espelho.
Não devo demorar-me muito mais, se a minha narrativa escapou à destruição,
foi por combinação de grande prudência e sorte em igual medida.", Henry Jekyll

Eu: Se a narrativa do Dr. escapou à destruição foi porque a decidiu pausar. Num país destes, a história teria ficado em pausa a partir do momento em que Jekyll aqui entrasse, nunca teria sido completamente Hyde. Seja como for, este é o laboratório, e se a investigação aprofundada não leva a lado nenhum, talvez devamos sair daqui. E como seria encontrar um artefacto como este soro? Coisa de lendas, aquela flor com que Coleridge sonhou e que quando despertou a encontrou na almofada, como é que era?


"E se um dia adormeces e, enquanto sonhas, vais ao Paraíso? 
E se lá te oferecem uma estranha e bela flor. 
E se, quando acordares, tiveres essa flor na mão? 
Então, o quê?", Coleridge


(sai do laboratório, caminha pelas ruas)
Eu: Porque é que este país é a réplica perfeita de Londres? Cada rua, cada candeeiro e cada ponte, eles existem assim noutro sítio qualquer. E se existir mesmo um tal soro? Estaremos prontos para ver o reflexo que os espelhos não podem ver? Se existir um outro eu, será que tem momentos em que toma conta e age por mim? Devo sentir culpa pelo que não fui eu que fiz, mas o meu corpo que disferiu? Pergunta tola, é óbvio que sim...

A grande diferença que separava o país das histórias que ficaram por contar de Londres eram os seus habitantes: espreitavam antes de sair de casa e, se saíssem, escondiam-se num jogo a saltar de sombra em sombra. Não admira que alguns venham aqui aguardar o último fôlego, a facécia que se tem de levar para levar uma vida a cabo, frente aos pontos de vista do público não merece a perda de tempo, porque não pausar até que o público mude? Entretanto, há barafunda no público, não entende se a referência foi a si ou ao acaso. Não há pior manipulação do que ver a vida escorrer em tinta.

Eu: O tempo parece estar parado aqui. Posso caminhar e caminhar e não sinto que alguma coisa esteja a avançar. Tenho um papel na mão que não me passa de uma pista.
(dá os últimos passos para além de uma ponte que se sobrepunha ao vazio onde outrora estaria um rio; assim que o último pé é calcado no chão fora da ponte, esta cai para o vazio.)

Eu: Nem sinto que isto me tenha assustado... Deve ter a ver com este sítio. Mas isto sempre é um desenvolvimento... Ou a prova de que não pertenço aqui.
(ao olhar em frente depara-se com uma Farmácia)

Eu: Quem aqui está já não tem nada a perder ou a ganhar com a vida. Imagine-se que o mais potente dos venenos infecta o mais querido dos nossos entes e trazê-lo a este país é uma solução que estagna o desenvolvimento do veneno. Quando continuar a história só pode trazer desgraça, porque não pausá-la? Todas as pessoas que aqui estão pensam que estão seguras, mas esta ponte acabou de desabar... E se por debaixo existiam sem-abrigos? As pessoas que esperam pelos que amam, os animais que esperam pelo regresso dos donos, os gatos que nunca desenlearam o novelo. Pergunto-me se existe cartão de visita? Parece um reino de desejos expressos que ficaram por cumprir. Não deve haver pior tristeza do que saber a nossa história e não a poder deixar desempenhar-se. E então põe-se uma rolha no luto, pausa-se o filme.
(empurra a porta da Farmácia, ao abri-la, sai um vulto apressadamente; o farmaceuta do outro lado do balcão também não revelava a cara...)

Eu: Estou à procura de um soro criado pelo Dr. Henry Jekyll, será que o posso encontrar aqui?

Farmaceuta: É aqui que se venderia, se o Dr. o tivesse chegado a desenvolver. Foi dos produtos que mais procurei. Só lhe posso oferecer este elixir e recomendar-lhe que ponha uma rolha na sua demanda. Aqui, todos temos histórias que não queremos que sejam contadas, as piores podem mesmo ser aquelas que não sabemos se tiveram um início.
(deixa uma pequena garrafa preta em cima da mesa, desvia-se do balcão e sai pela porta, para não tornar a ser visto.)

Eu: Este mundo pode manter os nossos pensamentos vivos. Mas que tipo de desilusão com a vida pode levar a que as pessoas aqui fiquem? Ninguém devia ter de viver num sítio destes. Ao menos a densidade demográfica não é grave, posso encontrar consolo nisso. Eu não vou querer ficar aqui. Se tenho uma história a desempenhar, que assim seja.

A sorte cai como um relâmpago.
(ao sair da Farmácia, encontra uma espécie de cubo Rubrik no chão, ainda que de tons metálicos enferrujados.)

Não foi a primeira certeza e também não foi a última vez. As palavras "Caixa de Pandora" vieram-me à cabeça. Mas no meio de tantas palavras e tamanhas histórias, encontra-se a história que ficou por contar de uma palavra. A verdade é que os mitos não são claros acerca das intenções de Pandora: tal como todas as outras pessoas, tem potencial para destruir e para criar. Mas como meia dúzia delas, decidiu não levar a cabo a sua missão. O que é que procurava, se é que procurava, Pandora, quando abriu a caixa? Que palavra disse quando a pôde finalmente abrir? Da sua abertura decorreu a divulgação de todos os males pelo mundo, entenda-se o que daqui se quiser entender. O facto de a caixa estar aqui e permanecer fechada faz impressão. E foi então que me apercebi:


"Eureka!", Arquimedes

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