Patético

Prelúdio

O público movimenta-se em volta de uma cortina vermelha com o título bem indentado: O caso caos. Podia ouvir-se os murmúrios, finalmente haveria uma explicação, finalmente saber-se-ia o que aconteceu, finalmente... Como se ver aquela cortina levantar-se e, meia hora depois, fechar-se fosse finalizar o que quer que fosse. Como se pontos finais saltassem da pontuação para a vivência. Como se a arte pudesse explicar a vida. E o que é que veio primeiro? A vida ou a arte? Nota-se uma mudança no tom do narrador.

O que vai aqui ser contado pode parecer justificar acções, mas qualquer semelhança ou sentimento de alívio que possa suscitar é um fortuito meramente surgido do acaso das correspondências. É que por vezes, as pessoas na vida têm o mesmo número de membros que as pessoas da ficção. Mas as pessoas da ficção não fazem tantos acrescentos à ficção como as pessoas da vida. O público acalma-se, senta-se, continua a falar entre si, continua sempre a falar, receio até que cause dificuldades ao actor que vai agir contra si mesmo. Perdão, o termo correcto é contracenar. Mas diluam-se as fronteiras, quem vai ao teatro vai na espera de ser abordado ou tocado por um actor bonitão, as cortinas vermelhas são apenas um pró-forma que rapidamente dali vai sair. Tal como o resto é pró-forma. O que o público parece não saber é que durante a peça a sua própria vida continua, que durante a peça, esta vai parecer incompleta e os seus comentários, inclusive à mosca que passa, farão parte da vida que não pára para se ouvir a sonata. Ponha-se a imaginar o que seria no caso de pararmos de respirar para ouvir uma canção.

Quando vemos uma peça, ela surge sempre incompleta. Não é que os actores não tenham actuado à intensidade do sangue que os seus corações bombeavam, é simplesmente que se olha para os actores com uma suspeita de facécia. Parece que a interpretação de cada um vai sempre ser mais honesta porque foi a própria vontade a inventá-la, a imputá-la, a preencher os buracos entre os passos dos actores no palco e a percepção do seu significado por cada um dos espectadores. Alguns podem chegar ao limite extremo de fazer uma notação musical para a intensidade dos sons dos passos dos actores, que, apesar de fundamentalmente ser pitagórica, é inútil.

Se se cortasse a barreira entre a vida e a ficção, será que se soltaria o caos? Ou será que o caos se solta pelo tecido interpretativo que tapa os buracos, mas nos quais um azarado com mais peso poderá cair?

Então, a peça que aqui se vai ver decorre unicamente do facto de podermos teatralizar os nossos passados: uma faca de dois gumes, o da autenticidade e o da facécia. Outro facto é o das memórias não serem fiéis às realidades, que são magnificadas ou são menosprezadas por um filtro sentimental que me dá vontade de arrancar o coração e… Espera, que ainda não é hora. O problema que surge é que em ficção podemos maquilhar as memórias da realidade com um filtro, em vez das vestes negras que sempre enverguei, posso apresentar-me de fato e gravata e o diabo que tanto tememos pode apresentar-se extremamente atraente, o que autenticamente reduz o nojo pela pobreza das vestes, por um lado e por outro, o medo pela própria ideia de medo que nos inculcaram religiosamente. Mas isto é apenas acerca de aparências, pois as essências rapidamente se revelam.

Esta foi a minha forma de procurar lidar com o Caos, uma personagem que inventei dentro de mim para que tomasse as culpas dos erros que cometi. Uma separação à boa maneira de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, entre as vontades perversas e as cortesias sociais. E este prelúdio patético é assim chamado por nunca poder vir a ser útil como exemplo. A peça que de seguida se apresenta é uma alegoria à mudança e à tolerância que tive de criar por mim próprio; e o final não pode ser feliz, porque o final é a última respiração, as palavras finais.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Estalactite

Antígona de Gelo

Furacão de Esmeraldas