Estranho Caso

1ª Cena do Acto I: No país das histórias que ficaram por contar.


"Na unidade original da primeira coisa
Encontra-se a secundária causa de todas as coisas
Com o germe da sua inevitável aniquilação."
— Edgar Allan Poe

Não existe pior tormento para um autor do que uma história que ficou por contar. Talvez não seja a forma correcta de o pôr: não há nada pior do que uma história que ficou por contar. Esta é a história de um estranho caso que ficou por resolver, talvez até tenha ficado por descobrir uma via para a sua solução. O melhor seria que a solução não fosse a dissolução na torrente de histórias que cada vida é.

No meio das ruínas do que parecia ser um laboratório abandonado, mas não sem antes ter sido vandalizado, descobri uma pasta de cabedal negro. De cada lado da caixa podiam ler-se inscritas algumas palavras, uma espécie de código: "JE/KILL" de um lado e "JE/HIDE" do outro. Claro que é de estranhar este aparente bilingue, o francês "Je" e o inglês "Kill" e "Hide", matar e esconder. Um leitor minimamente atento sabe perfeitamente a que estranho caso esta pasta se refere — e só espero que ninguém tenha de morrer por isso.

Administrador: O doutor Henry Jekyll ficou muito conhecido por ter inventado um soro que tornava manifesta a divisão extrema das vontades do corpo. Este laboratório e essa pasta pertenceram-lhe.

Eu: Que vontades?
(passeava pelo laboratório, examinava a destruição que parecia resultar de uma briga)

Administrador: Meu caro, eu vivo no país das histórias que ficaram por contar, há um motivo por nos termos aqui isolado. Há histórias com as quais não devemos brincar, com finais demasiado aterradores ou com finalidades que não podem ser positivas.

Eu: Compreendo, mas não me refiro à sua história, refiro-me à do doutor. Se for quem penso que é, é mais conhecida a sua história do que pensa.

Administrador: A minha?!
(leva a mão ao peito)

Eu: A do doutor Jekyll, há livros, ensaios e teses de perder de vista. Sob o efeito do soro, tornava-se Edward Hyde, uma personalidade muito certa de si mesma, mas simultaneamente muito mais violenta. Sem o soro, porém, Jekyll era fracamente aceite socialmente, claro que era médico e resolvia os problemas que tinha de resolver a quem lho pedia, mas noutros campos da sua vida o sucesso não era o mesmo.

Administrador: País das histórias que ficaram por contar, meu caro, torno a repetir. Não queira saber tudo, por vezes a ignorância é uma bênção.

Eu: Não para os meus objectivos.
(à medida que se aproxima da pasta de cabedal, tira do bolso uma faca)

Eu: Por muito que, há um par de séculos, esta pasta pudesse ser um forte impenetrável, nos dias que correm, uma boa facada pode perfurar este tipo de cabedal.
(com a faca, abre um buraco no cabedal e a pasta revela-se quase vazia, à excepção de um pedaço de papel)

Administrador: Vai continuar a precisar do meu auxílio? Quanto mais depressa eu puder sair deste pérfido laboratório, melhor.

Eu: Só lhe tenho a agradecer por aqui me ter trazido. Vá como for, mas pondere se é neste país que quer ficar. Por muito relaxada que a vida aqui seja, não existe desenvolvimento, parece não acontecer nada.

Administrador: É o melhor, é o melhor.
(sai de cena para não voltar a ser visto, mais uma história que ficou por contar)

O pedaço de papel parecia ter sido escrito a duas mãos, não como uma sonata, mas como duas pessoas que lutavam para depositar exactamente as mesmas intenções neste papel. Duas caligrafias que se substituíam mutuamente, uma menos apressada e violenta que a outra. O último parágrafo, apesar de ser o mais desolador, era o que usava uma caligrafia mais violenta, forçando o próprio pedaço de papel, rasgando-o em determinados pontos nos iis. Ironicamente, era a violência desta caligrafia que mais me atraía, e mesmo as ideias que apresentava pareciam-me as mais sensatas:

"Foi através da experiência que aprendi a não me preocupar com coisas que prendemos em caixas, caixas fortes que não permitam grande margem para movimento ou respiração profunda."

A outra caligrafia, mais comum no início do texto, descrevia o que eu queria saber acerca deste médico.

"Aprendi a reconhecer a complexa e primitiva dualidade do homem... se se podia dizer que eu era de um modo ou de outro, o motivo era o simples facto de ser, radicalmente, ambos."

O que não ia longe de outros pensamentos que eu recentemente tinha tido. Há uma consciência do instante em que estamos e, logo, surge uma consciência, como que histórica, que sonda, reconstrói e compara esses momentos vividos. Se a consciência do instante é ignorante por ser virgem (permita-se), a histórica é "inteligente" por ser experienciada (por assim dizer). A consciência do instante nunca cria noções como a de culpa e arrependimento, que a consciência histórica lhe lança.

Progredi na leitura da carta, descobri que o soro só tinha funcionado por ter sido usado um sal contaminado por um defeito desconhecido. Mas sabia também estar no laboratório certo, ainda que os conhecimentos literários não me dessem conhecimentos físico-químicos suficientes.

Pode ser que eu venha a falhar, tal como o Dr. falhou.

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