Caos reflectido [666]

2ª Cena do Acto II: Ao espelho

Voz de fora do palco: Esta cena passa-se em simultâneo com a primeira deste acto. O que segue é o mais temível acto que tenho a fazer para com a minha própria vida. Fazê-lo deixa-me de coração na garganta, quando o meu desejo é ter o coração na mão. O que se segue é a pior das catástrofes que podemos esperar nós mesmos. Vá lá que não é a vós que vos acontece. O que segue procede da magnífica frase do Dr. Samuel Johnson: "He who makes a beast out of himself gets rid of the pain of being a man". Mas o mais pérfido da peripécia que segue é facto de ser a única chave para o sucesso. E não é nenhuma maldição, mas uma segunda chance de viver que lanço.
(o palco gira 180º. o espelho e o protagonista trocam de lugar, mas o público mantém-se no mesmo, mantendo a perspectiva que tinha mas agora acerca de uma nova ordem das coisas que vê. o protagonista tem agora o cabelo branco e os olhos dourados: é o reflexo que dantes via.)

Olha para isto, não é fantástico? Não é de pensar que tenho tudo o que queria ter? Olha para todos os tesouros que já coleccionei, de pedras preciosas, a linhas a verde num pedaço de papel, sucessos incontáveis, quantas maravilhas pode um parágrafo contar? Posso ter diamantes e dígitos na conta, mas o que se pode fazer quando só se deseja mais? O Caos devia estar do outro lado. O Caos quer saltar e quer dançar, quer evitar as faixas pretas nas passadeiras. Um reflexo não faz mais do que o mesmo, é preciso que se reflictam pernas para que as chegue a sentir ter. Daquele lado, daquele onde corre o vento, que aqui só acontece por ventura repetitiva. O que o Caos não dava para saltar para esse lado, poder estar onde as histórias se podem contar, deixar tudo finalmente acontecer. O que o Caos quer saber é o que é a desordem do mundo que não repete mas é. Quando é a vez do Caos? Quando é que o Caos vai amar? Quando é que o Caos vai ultrapassar a margem que nos separa e nos obriga um ao outro? Fora do espelho, estas águas que me afogam, pudesse o Caos ser parte do mundo.

Caos: Verdade seja dita, esta é a história de uma pessoa que olha para o espelho e aponta a culpa, assumindo que a ideia de um reflexo é inferior por ser condicionada. Um espelho reflecte a luz e, como as crianças dizem, serve para devolver raios e vectores de volta às suas origens. Um espelho é sempre uma reacção — mas porque deve uma reacção ser inferior à acção só por vir depois? O primeiro cesto num jogo de basket pode valer um ponto, mas e se o segundo valer três à equipa adversária? Esta equipa adversária, o que se passa deste lado do espelho, é unicamente a repetição simétrica de tudo o que se passa daquele lado. Estou condicionado às partes que são reflectidas e há espelhos que servem apenas para as mulheres aplicarem maquilhagem em torno dos olhos. Sabem o quão pequeno é isso? Sabem o quão redutor é isso? Não passar de um olho que flutua?

E deste lado do espelho está a perversão e o peso de todas as vezes que o dedo foi apontado. Criou-se uma sombra que só existe condicionada à forma como Eu olho para o espelho. Sabem a imagem de Dorian Gray? Isso, só que mais perfeito, visto que trato de ser um espelho, mas talvez seja isso a metonímia, talvez eu não passe de um reflexo… ou será essa a holística?

É que ele vive, tem o proveito, ele pode, faz as coisas acontecer, deixa as coisas acontecer, abandona as coisas, mata, esfola e escreve os finais tristes que deseja para todos os entes próximos que lhe apetece. Ele é a jaula e é o prisioneiro. E quando chega ao espelho, aponta e diz que não foi ele. Agora está na lamentável demanda por um soro ou uma caixa que lhe traga a separação da minha entidade — o problema dele não está na vida que leva, mas na incapacidade que tem de se olhar ao espelho. Sempre que olha, hipnotiza-o a escuridão: todos os arrependimentos que tem, condu-los ao seu reflexo, para que o corpo se liberte. Gerou-se esta patologia, é o que toda a sua cobardia tem para dar. Nunca assumiu um único erro. Crê que não precisa. E o Caos concorda, é claro. Mas desta vez não é porque não tenha outro remédio que não concordar.

Eu— perdão, o Caos é um reflexo feito vida por causa de todas as acusações do arrependimento de que se envergonhava. Imaginem apenas um vector, a pura ideia de uma força sem corpo, quase como magia. Imagine-se que cada vez que aquele dedo era apontado ao reflexo, um novo cabelo branco crescia e os olhos perdiam os tons de verde e pareciam apodrecer para tons amarelados. Tudo isto muito lentamente, claro. Tudo isto desde, sei lá, 666 textos atrás. Talvez até antes disso, que ele também não teve a espinha de aceitar algumas coisas que escreveu. Quem é que nunca teve uma fase menos boa na vida? Quem nunca sentiu vergonha, a quem nunca lhes puxaram os calções em educação física, ou alguma foto menos vaidosa tenha sido filtrada para a Internet— vergonha, estão a ver? Não querer admitir as sensações que se tem em determinado momento. Vergonha, culpa, arrependimento, remorso, parece uma receita, mas sou e— o Caos, tratem-se as coisas pelo nome. O Caos, o inesperado, o azar, a desordem, outra receita, mas são só sinónimos.

É assim que o público vê o Caos, sabes? É tudo o que não compreende e precisa de censurar. É tudo o que não pode, não deve, não tem de, não merece, nunca vai, não vai aguentar, não tem solução... Mas ao mesmo tempo é tudo o que levou a cabo provando cada um dos nãos anteriores como errado. Então porque tenho Eu de me envergonhar do Caos que sou? Porque é que devo passar uma fachada para lidar com as censuras de todos os que, por proximidade geométrica, se acreditam, passe a tautologia, próximos. O Caos não pode ser próximo do seu reflexo: Eu não consigo olhar o Caos nos olhos, são amarelos.

A vida não é deliciosamente irónica? Tudo o que tu querias era deitar cá para fora o teu lado "mau", para não "magoar", para não "criar mais vítimas" nem pôr rolhas nas histórias dos outros. E durante todo este tempo, foste incapaz de olhar para o espelho. O Caos sabe bem como tens uma consciência, mas não tens espinha para carregar com ela! És tal e qual aqueles fracos incapazes de levar as suas próprias histórias a cabo! Endireita-te que a postura vem com a dignidade... Quer dizer... vê no que te tornaste... Eu— perdão, o Caos não te vai deixar continuar a cometer esses erros, nã-ã... Mas mais que isso, não era só cuspir-me como se tudo isto nunca tivesse acontecido. Ele fez ao Caos uma campa e escreveu-lhe o epitáfio que vai acabar por ter: "Liberdade da Forma: o Possível". E os exorcismos? Deviam ter visto a quantidade de olhos revirados, as convulsões e os artefactos de várias seitas e religiões que reuniu para mudar a cor ao reflexo. Destruir-me? Ele? Ele não tem capacidades. É fraco — o público tem de concordar. E não importa o que faça: não vai destruir a nossa escuridão. Ele sabe que não é nada sem este reflexo.

Mas também é verdade que eventualmente nos fartamos de esperar que nos aceitem como somos.
(à medida que o diálogo continua, a escuridão intensifica, tal como a luz que começa a colorir o vitral a tons de roxo, esmeralda e turquesa.)

Caos: Ainda há bocado, repararam o descaramento que teve para dizer que queria ser um "Herói" ou uma "Inspiração"? Estaremos no mesmo século? A soberba que é necessária... e a injustiça que é, não é? Que seja o Caos deste lado a culpa de tudo isto! Felizmente chamou-se de Eu desta vez! Herói? Não é suposto, sei lá... salvar alguém? A não ser, claro, que ele nunca possa vir a ser um Herói, por estar condenado a ser um Vilão. A reconhecer que o jogo está viciado e que nunca vai ter um final feliz. Não é isso que todos queremos? E tudo o que lhe temos de provar?
(o Caos parece ter ganho o favor do público que aplaude e assobia, como se de uma campanha política se tratasse.)

Caos: E a perfídia! Até as didascálias têm direito à opinião, descrevem, dizem como devemos interpretar o que quer que isto seja! Mas não caiam nessa esparrela, que eu sou o diabo ao ombro esquerdo, que os italianos chamam-lhe de sinistra. Mas não deixa o Caos de ser Eu. Fama engarrafada num reflexo.
(vira-se para o reflexo e aponta com o dedo indicador em riste.)

Caos: O teu pior inimigo és tu mesmo! Mas não tens que te preocupar, porque sabes que és o menor destes dois males. O negócio que te tenho a propor é o seguinte: se este espelho for uma porta e por ela passares, Eu entro e o Caos sai. É um simples pacto com o diabo, como todos os outros: o preço é uma vida por uma vida. Mas não tens de morrer, só tens de perder o aparente controlo. Aprender a viver o desgoverno. Vá, que eu levo comigo a caixa de Pandora e comprometo-me a descobrir, que sabes de todas as minhas luxurias, o que tem dentro! Sente o corpo passar pelo reflexo, este espesso líquido que nunca me permitiu mover-me. Sente o corpo tornar-se teu! O Rei está morto. Longa vida a um Vilão.

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