O reflexo do rei

3ª Cena do Acto I: No país das histórias que ficaram por contar

Então, a história de Pandora foi outra das que ficou por contar: a sua caixa nunca foi aberta. Se assim é, então que males continuam a atazanar o mundo real, pergunto-me. E o que é que está dentro deste cubo Rubrik? Prontamente, peguei na caixa e embarquei no primeiro zepelim para fora daqui.
(a cortina vermelha fecha-se e volta a ver-se o título indentado Caso Caos.)

1ª Cena do Acto II: Ao espelho

Quando a cortina se reabre o público pode apenas ver o protagonista em frente a um espelho. O palco é o topo de um cilindro decorado como o vitral de uma igreja, sem luz que o trespasse e ilumine. O espelho, do tamanho do protagonista, está pendurado por fios, é circular e não é decorado: uma folha de papel que se levanta e reflecte. A voz do narrador e do protagonista confundem-se a partir daqui.

Reflectir é característico das superfícies em cuja incidência da luz permite uma duplicação do que se coloca em frente. Parece haver entre esta ideia uma associação com a facécia, porque os reflexos não se mexem sozinhos, obedecem apenas aos comandos do objecto que reflectem, consoante os movimentos que leva a cabo.

Também chamamos reflectir à tipologia de pensamentos que utilizamos para inquirir o passado. Mas aqui, se associarmos a ideia de facécia que associamos ao facto do reflexo não ser livre, então é como se nunca tivéssemos cometido pecado algum: reflectir acerca do passado, associando esta ideia de fachada ou de inferioridade que associamos à reflexão, seria considerar toda a nossa história falsa. Na verdade, não é que o pensamento acerca do passado reflicta numa superfície como as que dantes descrevi tudo o que aconteceu. Não há um acesso tão sensível a estas ideias como há um acesso ao que está no espelho. E, na verdade, se me pentear e concordar com o reflexo no espelho, pode ser que saia de casa com um melhor aspecto do que sugerir a minha dúvida ontológica.

Estar próximo ou distante do espelho pode distorcer a reflexão e complicar a minha capacidade de apreender o reflexo e fazer dele uso. No entanto, estar ou não próximo do meu reflexo não tem efeito qualquer sobre o que se pode chamar de identidade: a mistura entre o corpo que levo e as acções que faço, por outras palavras, a minha forma e os meus modos.

Mas quando contamos a nossa história podemos separar os modos da forma. Aliás, não há alternativa: o corpo encontra-se no momento a contar uma história, o que implica a impossibilidade logística de cometer as mesmas acções que de antes a condenaram. Desta confusão não me consigo distinguir. Sempre precisei de um bode expiatório a sacrificar aos deuses em nome da boa sorte, da fortuna e como modo de fazer o público passar-se que nem apeshit.
(o público não emite um ruído, mas uma espécie de backtrack soa ao fundo, como que dizendo "ugh, ele outra vez", "ainda sobrevives?", "quem é que ele pensa que é?", "tem a mania que é rebelde", "não sabe escolher os amigos", "não sabe ao que dar valor", "nunca vais ser feliz, não sabes como", "se achas que és assim tão melhor, tira o cavalinho da chuva, nada disto vai servir de nada", "só sabes o que é o poder e sabes que o vais perder", "tens os dias contados"...)

BASTA! Se a escolha é entre amar e poder, então o simples facto de ter um coração é uma susceptibilidade. Se a escolha é tamanho abismo, que precede, procede e sucede de nós, então a única saída é o salto para a queda livre. E é aí que começa a distância da queda de um sonho. Querem saber o que me deixa violento? É terem razão. É o caos ser quem eu sou. É o caos viver dentro de mim e estar sempre a tentar escapar. Não espero que compreendam, sejam o público ou os habitantes do país das histórias que ficaram por contar, todos eles chegaram ao precipício mas arranjaram alternativas para a queda, antes que os consumisse. Por muito que tenha vontade de ceder ao caos, eu não o faço, deixo-me transparecer como sou. Deixo o vazio interior sair pela visão e não o mascaro mais. Para quê? Todos os outros tiveram a oportunidade de serem puxados para trás ou tiveram a capacidade pessoal de pausar e evitar a tragédia clássica... cujo único movimento nunca deixou de ser a queda. Para quê? Se a gravidade puxa mais do que os sentimentos?

Eu, por outro lado, fui consumido. E tenho de viver com essa viés ontológica para sempre, chamem-lhe karma, chamem-lhe justiça divina, chamem-lhe decisão do autor. É exaustiva. É uma constante guerra contra os meus instintos. Como com os inúteis do país das histórias que ficaram por contar: o meu primeiro impulso foi o de lhes arrancar as gargantas para que nunca chegassem a contar uma história. Porque não senti que fosse justo terem essa benesse, a de não ter de levar as suas histórias a cabo. De se acobardarem e temerem a vida, quando a morte é a única inimiga. Mas... não o fiz. Porque me domestiquei ou tentei, porque descobri que é errado arrancar gargantas. Por muito que eu queira ceder ao caos, eu não o faço. Por isso tento praticar "o bem" (para quê isto, agora?)... e odeio cada momento.

Voz: Odeias?

É complicado. É complicado saber o que é o correcto, que existe um correcto e que há uma possibilidade de definir (dar fim) ou determinar (dar termo) ao que quer que seja. Eu posso saber o que é o correcto, mas até agora só me trouxe perda, fastio, exaustão e desconcerto à balança. E continuo a fazê-lo e só consigo sentir mais e mais derrotas. Mas eu sei que o caos não pode sair, portanto... Ça c'est comme ça. Nunca vou sentir paz comigo mesmo. 

Voz: Isso não é verdade.

Eu sou o que sou e fiz o que fiz; e escolhi o que sou e o que fiz, não perdoei para preferir vingar-me. Ao início eu tive uma escolha, a de não embarcar numa aventura. Mas olhem como vamos a meio da história... Eu podia ter evitado! Podia ter-me resignado ao que "merecia", à justeza medida pelos filtros das vidas dos outros. Aos seus ímpetos e à sobreposição das suas vontades à minha respiração. Mas decidi cometer tantos erros atrás de erros. Fiz coisas tão indescritíveis e tão terríveis a tanta gente. É a génese do negrume que me faz de sangue, do medo de enfrentar um espelho, de viver como um retrato cuja verdadeira essência está completamente podre, decrépita e nojenta. Esse reflexo asqueroso é uma espada que vai sempre estar periclitante sobre o meu pescoço.

Eu tentei ser um herói ou uma inspiração. Mas só descobri que sou a origem de inúmeras histórias que ficaram por contar. Por isso, não há redenção para mim, só um purgatório de jogos intermináveis, indetermináveis e sem finalidade nenhuma. Agora sou eu que estou amaldiçoado, por saber que existe uma distinção, que dessa distinção decorre uma escolha e que tenho de viver com tudo isto. 

1. Se reverter para o Caos, perco todos os que amo;
2. Se tentar ser "melhor", tenho de lidar com os meus crimes e todas as merecidas consequências.

Eu: Para mim é uma escolha simples: prefiro sofrer a ver dor a arrebatar todas as pessoas que amo.
(o espelho vira-se para o público revelando que era de lá que a voz vinha. do reflexo saem as mãos que tiram o cubo Rubrik a que chamámos de caixa de Pandora das mãos do protagonista.)

Caos: Isso seria interessante, se a escolha fosse realmente tua. Mas também não acreditarias num destino se não estivesses preso na queda livre a que te atiraste. Está na hora de fazer a história seguir em frente. Está na hora de te prender noutro sítio. É que quando as histórias que ficaram por contar forem finalmente reveladas... eu vou só recostar-me de lado e ver-vos matarem-se uns aos outros.
(as últimas palavras são entoadas num tom muito mais infantil que tudo o resto.)

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