Treze Mortes.

Kiss me badly. Kill me softly.

Treze bouquets de flores definem lances de escadas, um degrau e outro são vinte rosas a cada par. Passam a cassete que repete as tuas últimas palavras e o ambiente, nunca o vi tão deprimente. As lágrimas caem como se chovessem orvalhos. O cheiro a incensos e perfumes intensifica a cada passo e na última das salas, por detrás de uma porta fechada, está o meu último beijo. Prestes a desaparecer nas profundezas da eternidade. Aqui sinto-me só, como se o caixão me envolvesse a mim e não a ela, toda a esperança desaparece quando vislumbro o corpo imóvel de quem mais amo. As lágrimas caem dos olhos das senhoras que nem tintas negras por detrás dos véus que tapam os seus olhos, e a noite, esse ambiente onírico, está longe de tudo. A vida é uma mentira que acaba nisto... uma mentira e a prova está na verdade irremediável: o corpo está deitado à minha frente, eternamente quieta a alma de um amor inquieto, para nunca mais o poder sentir. O meu amor finou a sua mentira.

Treze noites de álcool e drogas que me possuem a réstia de vida. A ilusão é tão coerente que a fantasia toma o lugar da realidade. Agora as lágrimas caem sem eu reparar, nado e afogo-me nelas, para acordar de respiração cortada - sem saber mais viver. Preciso de ervas, preciso de álcool, preciso de vomitar um mar de absinto para acreditar que ainda estou vivo. Estou farto de penar, a boémia também é vida, ao passo que a minha vida... a minha vida é um meio termo entre o onirismo e o incontrariável. No sonho sou um rei guerreiro vencedor de quês e porquês, dependente do seu amor, na realidade não passo de um vilão perdedor que deixou o seu prémio fugir e nada fez. Entre a fantasia e a verdade, sou um ignorante pecador que tanto fez como não fez, cujos ideais se combatem - a minha identidade são três inexistências. Peco por dizer, por omitir e por não saber.

Treze credos, e o funeral da inocência, de vidas que morreram sem merecer - de tanta maldade veio Bafomé em trajes que se confundiam com o escuro ambiente da minha alma, escolheu a mais imaculada alma da prateleira dos vivos, numa loja de graça. Negociei com ele como quem negoceia a necessária quantidade de veneno venoso, neste momento senti-me drogado de amor. Troquei a morte às minhas veias pelas veias que já estão mortas - perdi-me para a salvar. Mas a perversão de Bafomé foi tanta que me levou ambas, dei a minha vida pela que não ia retornar e, contente pelo seu negócio, o diabo de pés e cornos de cabra voltou a encarapuçar-se e da sua foice amputou duas vidas, uma já entregue e outra que se entregou. E juntos não caminhámos, encarcerou-nos, cada um de seu lado, eu da direita, ela da esquerda, a morte no meio e então se cumpriram os meus votos, até a morte nos separou.

Treze renúncias a um mundo onde podia ter ficado, mas a obsessão contestou a mortalidade. Nunca fiz por menos, amei até mais do que me pediam - podia achar egoísta o facto de se ter deixado ir sem me avisar, mas isso seria igualmente ignóbil da minha parte. A nobreza que tanto desejei, o sangue dourado que nunca derramei, é assim que tudo acaba, numa incontestável igualdade entre tudo e todos. Mas agora... agora não há esperança, já desisti de ser parte dos restos, eu não sou um massivo prato italiano que ninguém come até ao fim, quis morrer finalmente para me aperceber que a eternidade me estava destinada. Estou rodeado de fogos-fátuos e crucifixos de ossos, as caveiras olham para o seu mestre e do fogo vermelho que faz todo o cenário ouvem-se os mais estridentes gritos dos que cumpriram a afamada predestinação. O suor que escorro de mim é o meu peso em sangue e à primeira lufada de ar fresco...

Treze fantasias e acordo para o pesadelo em que vivo. Caminhei por uma estrada de bem intencionados defuntos para perceber o entendido, os sinos e candeias da morte são inalteráveis e nunca malignos. O pesadelo de muito boa gente, o medo dos obcecados pelo poder neste mundo quando o reconhecimento aparece assim que pisamos o outro. Como se a humanidade (mortal) que tanto desdenham e odeiam fosse a linha do perigo. Vi lá mais cristais e diamantes do que os que tive em vida, riqueza para lá do pensamento, não física, mas feliz. Era lá que eu realmente dançava no escuro, por debaixo da minha campa, ao lado de quem eu amava, numa orgia sensacional de medos misturados com sonhos realizados. Renunciar à morte é mais pecaminoso que errar em vida.

Treze odisseias escritas igualmente, uma delas minha, seis prescritas e seis outras ainda por escrever. São oceanos tudo menos pacíficos por cruzar e noites por desbravar. Whisky e três pedras de gelo para afogar um rio que tenho por navegar. Vou amar novamente, apaixonar-me às escuras, fazer amor com as estrelas no céu do meu futuro, gritar como os povos guerreiros que me dedico a corpo inteiro à vida e é nela que mereço ser feliz, sabendo que quem partiu viveu e ganhou o jogo, pela sua verdadeira inocência. Vou celebrar cada morte como o fim do sofrimento de uma vida! Vou honrar cada regurgitação tal como cada singular momento de ebriedade que me trouxe ao meu lugar e definiu a minha realidade, que só soube o que era quando a discerni, por tentativa e erro, da loucura.

Treze terços de orações cujo significado era o vácuo (e perdoa-me, mãe, por saberes que não sou pagão). Para o entendimento da minha alma, a quantidade não é qualidade, mas há que aceitar as qualidades de cada um em detrimento dos defeitos... melhor ainda, há que celebrar os nossos defeitos, torná-los o que nos une à parte do destino comum. Basta da verdade feia! Quero viver como nos sonhos, quero um mundo só de defeitos que ninguém precise de apontar, eu sou o que sou com todos os meus defeitos, bolhas de sabão, e arco-íris, e unicórnios, e bolos, e doces, e castelos e pirâmides! Sou negativo mas o amor é universal. Sou pessimista mas a morte é tão linda quão inevitável. E aqui está a minha segurança: eu sou um gaiato num mundo de vivos, quero o que muitos antes sonharam e vou escrever com o meu sangue até acabar, até que a minha utopia se realize. Eu não odeio ninguém.

Kiss me softly. Kill me badly.


Comentários

  1. Tiago. Perfeito! O teu melhor texto de sempre, sem dúvida! Não há palavras. Haverá algum texto tão bem escrito?!
    Até dá pena ver alguém que escreve tão bem não ser reconhecido, de verdade!

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