Quem Puxa o Gatilho.



As mãos cobertas de sangue e fecho os olhos a mais um. A carnificina não está prestes a acabar.

Depois de tudo o que passámos... injectar pólvora nas veias continua a ser a nossa resposta. Deslizou o gatilho, mais vezes do que era necessário - rezei a deus para sentir que estava do lado certo, matei mães aos olhos dos filhos, sobreviveram menos do que morreram. Neste leito sangrento, cemitério de corações, meados de um areal - caíram como a cruz que atei às costas das suas famílias. Ignorados e abandonados, cuidei dos seus corpos, deixei a minha desculpa com eles e as minhas lágrima efeito-zero tiveram nos esburacados corpos do meu revolver. Inóspitos calores e suores, sangue e fogo aberto, "não te preocupes, eu vou regressar para te amar" - e matei-o antes de poder voltar a pensar na pessoa amada. Mulher e filha na sombra do óbito, mais um funeral por um pedaço de pólvora, por ideias ainda a definir. Tememos ganhar. Tememos perder. Nunca tememos destinar prematuramente o alheio.

Esta pinga de sangue que me percorre o dedo é demais, sinto-me engolido por um Tsunami vermelho - não foi para isto que nasci, não foi por isto que decidi existir. Nós não somos deuses só por decidir quando os outros devem partir. Nós não somos donos de melhores corpos por matar outros devido às nossas inseguranças. Nós não vamos receber o amor de mais mulheres por lhes matar os maridos e filhos em guerras de mútua culpa e inexistente razão.

Olho para o horizonte, vejo as silhuetas aproximarem-se. É o país dos mortos. O calor apodera-se de mim e só quero dormir à noite. Agarrei-me ao revolver, era a minha única companhia, a que mais desprezava. Mais sete pelo menos tinham de partir - se eu queria? Não, mas dez milhões de soldados não podem estar todos errados... apesar de uns matarem por medo e outros por diversão. Mais um sinal da cruz, abraçado aos joelhos, por detrás de uma duna. As memórias não me deixam chorar mas cada tiro meu é um símbolo de respeito e vergonha.

Traímo-nos a nós mesmos, deslizamos o gatilho cerebral da insegurança corpórea. Podia ser a nossa vida do outro lado da bala. Desprezamos a nossa condição, entregamos corpos à morte e sorte, doentios só pensamos em atirar, pegar numa nova pistola e tornar a assassinar. Assim que nos perdemos deixamos de saber, de onde veio aquela bala? Este campo de batalha é um videojogo e nós só temos uma vida - ermo da morte, qual é a glória de retornar se nos tingirmos de pólvora, gás e sangue?

À distância, para nós é ficção quando a morte de um homem é disparada por uma criança. Para os realistas, a morte é ficção, para mim uma obsessão, para o mundo um medo que a torna algo a afastar, algo a desmaterializar, a morte, aos olhos dos medrosos não existe e deve ser ultrapassada. Mas são os medos que devem ser atirados fora, é a aceitação que deve aparecer e nós devemos aceitar a morte por via natural - só vou largar a minha pistola quando mais nenhuma outra arma no mundo me for apontada.

E à noite, caminhar é perigo. E à noite, sussurrar é grito. "Shh, cala-te, podes acordar alguém," "quem? os corações de tantas almas mortas pelas nossas vidas? pelos luxos que temos e que eles nunca tiveram a oportunidade de viver? as almas dos desesperados, injustiçados, esses que realmente se crucificaram por nós? para vivermos felizes à sombra das suas mortes? a nossa luxúria para a sua condenação? quero acordar quinhentas vezes as suas almas e dançar nas campas dos governadores que os mataram. Lamento as suas mortes mais do que me arrependo de viver, irreversíveis imoralidades que vivemos enquanto saltamos de sepulcro em sepulcro. Expliquem-me, como posso viver assim?!, como posso viver a pensar que morreram para nós sobrevivermos e os desrespeitamos como agradecimento à vida que levamos a cabo. Quantos corpos estão por desenterrar neste deserto? Quantos poderiam ainda estar vivos? A nós é que nos mataram."

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